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Washington, D.C., 28 de julho de 2014

 

Renan Calheiros

Senador, Presidente do Senado Federal do Brasil

 

Vital do Rêgo

Senador, Presidente da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado

 

Humberto Costa

Senador, Relator do Projeto de Lei nº  554 de 2011 da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado

 

Henrique Eduardo Alves

Deputado Federal, Presidente da Câmara dos Deputados

 

Vicente Cândido da Silva

Deputado Federal, Presidente da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados

 

Senhores  Parlamentares,

Cumprimentando-os, gostaríamos de compartilhar com Vossas Excelências nossas preocupações em relação à prática recorrente de tortura e tratamento cruel, desumano e degradante por policiais, agentes penitenciários e agentes do sistema socioeducativo no Brasil e instá-los a apoiar um projeto de lei essencial para conter esses abusos.

A Human Rights Watch é uma organização não-governamental internacional dedicada à proteção dos direitos humanos em todo o mundo. Temos equipes em mais de 59 países e trabalhamos com governos e representantes da sociedade civil para defender direitos civis e políticos, proteger as pessoas contra a tortura e condições desumanas de detenção e eliminar práticas abusivas por membros das forças de segurança, entre outras violações de direitos.

Ao longo do último ano, realizamos uma pesquisa minuciosa no Estado de São Paulo sobre casos nos quais identificamos fortes indícios da prática de tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante. Entrevistamos dezenas de integrantes do sistema de justiça e analisamos detalhadamente os boletins de ocorrência, exames de corpo de delito, depoimentos de testemunhas e decisões judiciais em mais de 100 casos de suspeita de abusos. Concluímos que, apesar de importantes esforços promovidos ao longo dos últimos anos para conter esses crimes, a tortura e o tratamento cruel, desumano e degradante por agentes estatais continua sendo um grave problema em São Paulo.

Examinamos, ainda, uma série de casos nos quais identificamos fortes indícios desse tipo de abuso nos Estados do Rio de Janeiro, Bahia, Paraná e Espírito Santo e consultamos diversas autoridades do governo federal, incluindo membros do Ministério da Justiça e da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Essa pesquisa adicional revelou que a prática de tortura e de tratamento cruel, desumano ou degradante não está restrita a São Paulo—pelo contrário, é parte de um problema muito mais amplo no Brasil.

Além de violarem os direitos fundamentais de pessoas sob a custódia do Estado, essas graves violações de direitos humanos dificultam o desenvolvimento de uma relação de cooperação e diálogo entre a polícia e as comunidades, o que prejudica investigações criminais e o combate à criminalidade de maneira geral.

Gostaríamos de trazer os resultados desse trabalho de pesquisa ao conhecimento de Vossas Excelências para reforçar a importância do Projeto de Lei 554, proposto pelo Senador Antônio Carlos Valadares em setembro de 2011 e atualmente sob a análise da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado.[1] O referido projeto de lei determina que pessoas presas em flagrante devem ser conduzidas à presença de um juiz em até 24 horas, assegurando, assim, que elas possam imediatamente denunciar às autoridades judiciais quaisquer abusos sofridos desde o momento de sua abordagem e que investigações possam ser iniciadas antes que lesões físicas e outras provas dos abusos desapareçam ou fiquem comprometidas.

Solicitamos respeitosamente que Vossas Excelências assegurem o trâmite célere do Projeto de Lei do Senado 554 de 2011 que, pelas razões abaixo expostas, é fundamental para garantir a integridade física e dignidade humana de presos no Brasil.

 

Medidas Adotadas Recentemente Contra a Prática de Tortura

Nos últimos anos, o Brasil tomou providências relevantes para conter a prática de tortura e de tratamento cruel, desumano e degradante. Em agosto de 2013, a Presidente Dilma Rousseff sancionou uma lei que criou o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e instituiu um Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, composto por 11 peritos com poderes para realizar visitas periódicas a locais de privação de liberdade civis e militares (“Mecanismo Nacional”).[2] 

Pela primeira vez, um órgão do Estado será incumbido exclusivamente de acompanhar casos de tortura e tratamento cruel, desumano ou degradante e terá acesso a todos os locais de privação de liberdade. Além disso, o Mecanismo Nacional terá acesso, independentemente de autorização, a todas as informações e registros relativos ao número, à identidade, às condições de detenção e ao tratamento conferido às pessoas privadas de liberdade no Brasil e poderá requerer às autoridades competentes que instaurem procedimentos criminais e administrativos mediante a constatação de indícios da prática de tortura e de tratamento cruel, desumano ou degradante.[3]

Conforme destacamos em um comunicado de imprensa publicado em agosto de 2013, o Mecanismo Nacional poderá desempenhar um papel fundamental na exposição de casos de tortura e de tratamento cruel, desumano e degradante e na prevenção de violações—desde que receba recursos suficientes, conte com peritos independentes e receba o apoio político de todas as instâncias do governo.

Outrossim, em abril de 2014, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou uma recomendação que destaca a importância da observância das diretrizes do Protocolo Brasileiro de Perícia Forense no Crime de Tortura e o Manual para a Investigação e Documentação de Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1999), conhecido como o Protocolo de Istambul.[4] A recomendação estabelece normas básicas que devem ser seguidas por magistrados que receberem denúncias fundadas da prática de tortura. Dentre essas regras, estão os quesitos a serem formulados ao perito médico-legista ou a outro perito criminal (quando da eventual realização de trabalho conjunto) e a necessidade dos magistrados buscarem outros elementos de prova para a elucidação dos fatos, tais como fotografias e filmagens dos agredidos e a oitiva em juízo de todos aqueles envolvidos nas denúncias.

É digno de mérito notar que essas medidas refletem um reconhecimento por parte das autoridades brasileiras de que conter a prática de tortura e de tratamento cruel, desumano ou degradante por agentes estatais permanece um desafio. Se forem rigorosamente implementadas, acreditamos que podem ajudar a coibir abusos. No entanto, outras políticas públicas são essenciais para garantir que vítimas de tortura e de tratamento cruel, desumano ou degradante possam denunciar  as violações e que os seus autores sejam devidamente responsabilizados.

 

Tortura e Tratamento Cruel, Desumano ou Degradante de Suspeitos e Presos 

A Human Rights Watch constatou fortes indícios do envolvimento de agentes estatais em 64 casos de tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante ocorridos entre 2010 e o início de 2014 em São Paulo, na Bahia, no Espírito Santo, no Paraná e no Rio de Janeiro. Obtivemos não somente depoimentos de testemunhas, mas também filmagens, fotografias, laudos periciais e decisões judiciais, entre outras informações e documentos. Além disso, analisamos outros 65 relatos de tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante que consideramos coerentes e consistentes com os padrões revelados nos outros incidentes.

Os atos de tortura e de tratamento cruel, desumano ou degradante que documentamos incluíram espancamentos, ameaças de agressões físicas e de violência sexual, choques elétricos, sufocamento com sacos plásticos e violência sexual. Em muitos casos, as vítimas foram submetidas a mais de uma forma de tortura e relataram terem sido ameaçadas para não denunciar as violações. Em 40 dos 64 casos, as informações que analisamos sugerem que os abusos constituíram efetivamente tortura.

As violações ocorreram em diversas localidades: nas ruas, residências, viaturas policiais, delegacias e unidades de detenção. Em muitos casos nos quais as vítimas foram detidas em residências, policiais aparentemente entraram sem mandados de busca. Pelo menos 103 policiais militares, 24 policiais civis, 17 agentes penitenciários ou agentes do sistema socioeducativo e 10 agentes estatais não identificados estiveram envolvidos nos casos que examinamos.

É importante destacar, tendo em vista a proposta de legislação sendo considerada atualmente pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, que a maioria dos abusos que documentamos em São Paulo, assim como no Paraná e na Bahia, ocorreram nas primeiras 24 horas da custódia policial. O objetivo dos agentes era extrair informações ou confissões das vítimas, ou castigá-las por supostos atos criminosos.

Por exemplo, no primeiro semestre de 2013, sete policiais do 1o Batalhão da Tropa de Choque, Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA), detiveram o jovem de 17 anos Z.Z. em sua residência e o levaram para uma delegacia.[5] Após ser liberado por falta de provas, Z.Z. voltou para a delegacia e relatou que os policiais o haviam espancado e aplicado choques elétricos em sua barriga por mais de 30 minutos em sua residência, enquanto perguntavam se ele era “um tal de Zabo”. Os policiais teriam ameaçado que “não esqueceriam [dele] e voltariam para queimá-lo” se ele denunciasse os abusos. Em depoimento formal à Polícia Civil, um vizinho de Z.Z.  afirmou que “ouviu gemidos e gritos de Z.Z. pedindo para os policiais pararem de bater nele”, e logo em seguida viu os policiais o arrastarem até uma viatura policial com o rosto e a barriga inchados e vermelhos.

Em outro episódio, diversos policiais militares prenderam I.J., K.L. e M.N. em maio de 2012 e os levaram ao 58º Batalhão da Polícia Militar de Salvador, no Estado da Bahia. Os suspeitos depuseram em juízo que os policiais os haviam espancado e estrangulado para forçá-los a confessar a posse de drogas e armas de fogo, alegações corroboradas por exames de corpo de delito que mostram diversas lesões em seus rostos, joelhos, cotovelos e peitos no dia de sua prisão.

Em um caso amplamente divulgado na mídia, quatro jovens com idades entre 22 e 25 anos foram presos em 27 de junho de 2013 depois de supostamente confessarem o estupro e o homicídio de uma menina de 14 anos na região metropolitana de Curitiba, no Estado do Paraná. No entanto, os jovens relataram à Ordem dos Advogados do Paraná que policiais os levaram a quatro delegacias diferentes onde foram espancados e sufocados, além de receberem choques elétricos, para confessarem o crime. Uma semana depois, peritos concluíram que o sêmen encontrado na vítima não correspondia com o DNA dos quatro acusados. Após cobertura extensiva do caso pela mídia nacional, o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do Ministério Público Estadual denunciou 19 policiais e outros agentes pelo crime de tortura contra os suspeitos.

Em julho de 2013, Amarildo Dias de Souza (“Amarildo”) desapareceu após ter sido detido por policiais militares na comunidade da Rocinha na cidade do Rio de Janeiro, Estado do Rio de Janeiro. Os policiais afirmaram que soltaram Amarildo e que ele havia deixado a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha a pé. Porém, de acordo com um delegado que apurou o caso, as filmagens das câmeras de segurança do local somente registraram a saída de viaturas policiais. Em outubro de 2013, promotores estaduais ofereceram denúncia criminal contra 25 policiais pela tortura de Amarildo com choques elétricos, asfixia e afogamento com o intuito de forçá-lo a revelar o local onde traficantes de drogas teriam escondido armas de fogo e drogas.

Analisamos, ainda, informações que sugerem que os policiais envolvidos no desaparecimento de Amarildo torturaram vários outros moradores da Rocinha em 2013. Por exemplo, na véspera da prisão de Amarildo, policiais militares aparentemente levaram o jovem X.Z., de 16 anos, ao Centro de Comando e Controle da Rocinha e o ameaçaram com violência sexual, colocaram sua cabeça dentro de um vaso sanitário cheio de fezes e o forçaram a ingerir cera líquida para que revelasse os nomes de traficantes de drogas, conforme relataram os pais do jovem à Human Rights Watch e ao Ministério Público do Rio de Janeiro. Promotores estaduais também apuraram a tortura do jovem C.D., de 15 anos, que teria sido levado ao mesmo Centro de Comando e Controle em maio de 2013, sufocado com um saco plástico e ameaçado de estupro e morte se ele não revelasse o esconderijo de drogas e armas de traficantes.

 

A Dimensão do Problema

É difícil determinar a total dimensão da prática de tortura e de tratamento cruel, desumano e degradante por agentes estatais no Brasil. No entanto, o envolvimento de policiais, agentes penitenciários e agentes do sistema socioeducativo nos casos que investigamos em cinco diferentes estados (inclusive em ambientes controlados como delegacias de polícia, prisões, centros de detenção e estabelecimentos do sistema socioeducativo) sugere que esses incidentes não são isolados. Pelo contrário, são parte de um problema muito mais amplo.

As poucas estatísticas oficiais disponíveis sobre tortura no Brasil corroboram esta conclusão. Entre janeiro de 2012 e junho de 2014, a Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos recebeu 5,431 denúncias de tortura e tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes (aproximadamente 181 denúncias por mês) de todo país pelo Disque Denúncia.[6] Um total de 84% dessas denúncias se referem a abusos em presídios, cadeias públicas, delegacias de polícia, delegacias que operam como unidades prisionais e unidades de medida sócio educativa.[7]

Do mesmo modo, o Subcomitê das Nações Unidas de Prevenção da Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes revelou em 2012 que havia recebido “repetidas e consistentes” denúncias de tortura e maus tratos nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Goiás, “cometidos, em particular, por policiais civis e militares.”[8] Os abusos teriam ocorrido sob a custódia de policiais ou na abordagem, nas ruas, dentro de residências ou em áreas abertas desertas e foram descritas como “violência gratuita, forma de punição, meio de extrair confissões ou extorquir as vítimas.”[9]

 

Obstáculos Para Denunciar Abusos

Uma garantia fundamental prevista no direito internacional dos direitos humanos é que pessoas presas devem ser prontamente apresentadas a uma autoridade judicial. Isso permite que possam denunciar imediatamente quaisquer abusos sofridos desde o momento de sua abordagem a uma autoridade independente.

Entretanto, no Brasil, muitos presos esperam três meses ou mais para serem conduzidos à presença de um juiz, de acordo com relatos de  integrantes do sistema de justiça entrevistados pela Human Rights Watch. Grande parte das prisões no Brasil é efetuada em flagrante (apenas no Estado de São Paulo, 161.731 pessoas foram presas em flagrante em 2012, o que equivale a 71% do total de prisões no Estado).[10] Nesses casos, o Código de Processo Penal prevê que somente os autos da prisão em flagrante (mas não o próprio preso) sejam apresentados a um juiz no prazo de 24 horas.[11] Dessa forma, juízes avaliam a legalidade da prisão e determinam a soltura do preso, detenção preventiva ou medidas cautelares com base exclusivamente em documentos preparados por policiais.[12]

A Constituição de 1988 prevê a garantia do habeas corpus em casos de violência ou coação na liberdade de locomoção de qualquer pessoa, por ilegalidade ou abuso de poder.[13] Os artigos 647 e 648 do Código de Processo Penal, estabelecem que a coação pode ser ilegal em várias circunstâncias, como quando não houver justa causa; quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a lei; quando quem ordenou a coação não tem competência para fazê-lo ou quando o detido tiver o seu pedido de fiança negado nos casos em que a lei autoriza.[14] Todavia, mesmo quando um habeas corpus é impetrado no Brasil, isto não garante a condução de uma pessoa detida a um juiz. Na prática, a única oportunidade que muitos presos têm de denunciar abusos para autoridades judiciais é no seu interrogatório que ocorre meses após a sua prisão. 

Esta demora torna pessoas detidas mais vulneráveis à tortura e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes e compromete a preservação das provas dos abusos. Quando os presos finalmente denunciam às autoridades que sofreram abusos por parte de policiais ou agentes penitenciários, investigações sobre os abusos acabam contendo diversas falhas, como a falta de provas, o que dificulta a comprovação das denúncias e a determinação da responsabilidade criminal dos envolvidos. Segundo defensores públicos, promotores e juízes que consultamos, isto é um fator importante que contribui para a impunidade em casos de tortura e tratamento cruel, desumano e degradante.

No Rio de Janeiro, por exemplo, a Ouvidoria da Polícia recebeu aproximadamente 9.000 denúncias de abusos envolvendo policiais em 2011, 2012 e 2013, incluindo mais de 7.900 denúncias de crimes violentos como estupro, espancamento, tortura, homicídio, lesão corporal e outras agressões físicas.[15] Essas denúncias geraram sanções para apenas 18 policiais.[16] A Justiça Militar do Estado de São Paulo recebeu pelo menos 4.000 casos de suposta prática de lesão corporal por policiais militares entre janeiro de 2011 e julho de 2013.[17] Porém, somente 53 policiais foram condenados pela prática desse crime neste período.[18]

 

Obrigações do Brasil perante o Direito Internacional

A tortura e o tratamento cruel, desumano ou degradante são proibidos pelo direito internacional e não podem ser justificados em nenhuma circunstância. O Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, do seu Protocolo Facultativo e da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, assim como outros tratados internacionais que estabelecem proteções contra a tortura, como a Convenção dos Direitos da Criança.

A obrigação do Brasil perante estas normas internacionais não é apenas prevenir a tortura e o tratamento cruel, desumano ou degradante, mas também investigar e instaurar procedimentos criminais em relação a tais atos — o que inclui garantir que pessoas presas sejam apresentadas a uma autoridade judicial sem atrasos desnecessários.

De fato, o direito do preso à condução célere às autoridades judiciais consta em tratados ratificados pelo Brasil, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos. O Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, responsável por interpretar o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, determinou que o atraso entre a prisão de um acusado e a sua apresentação à justiça “não deve ultrapassar alguns dias”, nem mesmo durante estados de emergência.[19] Além disso, no caso Castillo-Páez, a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou em 1997 que a Convenção Americana e a Constituição do Peru haviam sido violadas quando um detento não compareceu perante um tribunal competente no prazo de 24 horas (conforme estipulado pela constituição peruana).[20]

Outros países da América Latina já incorporaram em suas legislações internas o direito dos presos de serem prontamente conduzidos a uma  autoridade judicial. Por exemplo, na Argentina, o Código de Processo Penal federal exige que, em casos de prisão sem ordem judicial, o detento compareça perante uma autoridade judicial competente no prazo de seis horas após a prisão.[21] No Chile, o Código de Processo Penal determina que, em casos de flagrante, o suspeito seja apresentado dentro de 12 horas a um promotor, que poderá soltá-lo ou apresentá-la um juiz no prazo de 24 horas da prisão.[22]

 

Projeto de Lei 554 de 2011

O Projeto de Lei do Senado 554 de 2011 que visa reformar o Código de Processo Penal para estabelecer audiências de custódia obrigatórias está atualmente sob a análise da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal. Apoiamos fortemente a aprovação deste projeto de lei. Garantir audiências de custódia em 24 horas para todas pessoas presas em flagrante permitirá que vítimas de tortura ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes denunciem os abusos imediatamente, enquanto provas ainda estão preservadas.[23]

Por exemplo, se os policiais da ROTA que prenderam Z.Z. em São Paulo em 2013 soubessem que ele seria imediatamente conduzido a um juiz e poderia descrever em detalhes como foi espancado e submetido a choques elétricos, além de lhe mostrar as marcas físicas dos abusos, é  provável que eles pensassem duas vezes antes de praticar os supostos atos de tortura. Do mesmo modo, talvez os policiais militares da comunidade da Rocinha não teriam cometido abusos se tivessem que conduzir as vítimas a autoridades judiciais em 24 horas.

Além disso, audiências de custódia contribuirão para a exclusão de confissões e outras provas obtidas por meio de tortura de processos criminais. Embora a inadmissibilidade de provas obtidas em violação de normas constitucionais seja clara na legislação brasileira e no direito internacional, defensores públicos afirmaram de forma unânime que essa proteção fundamental é frequentemente desrespeitada.[24]

É importante frisar que o projeto de lei exige, ainda, que as audiências de custódia ocorram na presença dos representantes legais dos presos e proíbe a utilização posterior das oitivas como meio de prova contra os depoentes. Sem essas garantias essenciais, pessoas detidas teriam que escolher entre o direito ao silêncio e o direito de ter sua integridade física resguardada.

Outras medidas certamente serão necessárias para coibir a tortura e o tratamento cruel, desumano e degradante no sistema prisional e devem ser tratadas como prioridade pelo Mecanismo Nacional e pelo Congresso Nacional. Entretanto, acreditamos que a aprovação do Projeto de Lei do Senado 554 de 2011 também ajudará a prevenir a tortura e outras violações cometidas após as primeiras 24 horas de prisão ao sinalizar de forma inequívoca o comprometimento do Brasil com o combate à tortura e a criação de canais efetivos para as vítimas denunciarem abusos.

Mais uma vez, lembramos que o Brasil tomou passos importantes nos últimos anos para combater a prática de tortura e de tratamento cruel, desumano ou degradante. No entanto, mais ações são necessárias para garantir que as vítimas de abusos possam imediatamente denunciar violações. O Projeto de Lei do Senado 554 de 2011 oferecerá esta oportunidade. Diante do exposto, instamos Vossas Excelências a aprovarem esse projeto de lei com a maior brevidade possível.

 

Recebam nossos votos de mais alta estima e consideração e nos colocamos à disposição para maiores esclarecimentos.

 

Atenciosamente,

 

Maria Laura Canineu

Diretora da Human Rights Watch Brasil

 

 

José Miguel Vivanco

Diretor da Divisão das Américas Human Rights Watch

 

 

Com cópia para:

Dilma Rousseff, Presidente da República

***

Assis do Couto, Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados

Aurélio Veiga Rios, Procurador Federal dos Direitos do Cidadão

Guilherme Calmon, Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça

Ideli Salvatti, Ministra de Estado da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República

Joaquim Barbosa, Presidente do Superior Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça

José Eduardo Cardoso, Ministro de Estado da Justiça

Ricardo Berzoini, Ministro de Estado das Relações Institucionais

Ricardo Lewandowski, Vice-Presidente do Superior Tribunal Federal

Rodrigo Janot Monteiro de Barros, Procurador Geral da República

 

 

[1] Projeto de Lei do Senado (PLS) 554 de 6 de setembro de 2011, proposto pelo Senador Antônio Carlos Valadares.

[2] Lei no 12.847 de 2 de agosto de 2013.

[3] Decreto no 8.154 de 16 de dezembro de 2013.

[4] Recomendação no 49 de 1º de abril de 2014.

[5] Por razões de segurança, a identidade das vítimas, testemunhas, e outros detalhes foram omitidos.

[6] E-mail enviado pela Coordenação Geral do Disque Denúncia da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República em 24 de julho de 2014 em resposta a um pedido de informações da Human Rights Watch. Nos arquivos da Human Rights Watch.

[7] Ibid.

[8] Relatório da visita do Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção da Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes ao Brasil, 5 de julho de 2012.

[9] Ibid.

[10] “Estatísticas Trimestrais,” Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, http://www.ssp.sp.gov.br/estatistica/trimestrais.aspx (acessado em 7 de julho de 2014).

[11] Código de Processo Penal (Decreto-Lei No. 3.689 de 3 de outubro de 1941), art. 306. § 1º.

[12] O código de processo penal brasileiro também não exige que os suspeitos presos com mandado judicial sejam apresentados a um juiz após a prisão. Apenas pessoas suspeitas de cometerem crimes inafiançáveis em cuja prisão não foi apresentado um mandado de prisão devem ser levados imediatamente à presença de um juiz. (Art. 287, caput) 

[13] Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de Outubro de 1988, art. 5º, inciso LXVIII.

[14] Código de Processo Penal (Decreto-Lei 3.689 de 3 de outubro de 1941), arts. 647 e 648.

[15] Relatórios Anuais da Ouvidoria da Polícia do Rio de Janeiro, 2011, 2012, 2013.

[16] Ibid.

[17] Resposta do Tribunal Militar do Estado de São Paulo, via Sistema Estadual de Informações ao Cidadão (SIC), em 19 de setembro de 2013 e 11 de outubro de 2013, a pedidos de infomação da Human Rights Watch encaminhados em 21 de agosto de 2013 e 1 de outubro de 2013. Arquivos da Human Rights Watch.

[18] Ibid.

[19] Comunicação No. 521/1992, V. Kulomin v. Hungary (Entendimento adotado em 22 de março de 1996), em UN doc. GAOR, A/51/40 (vol. II), p. 80, para. 11.2.

[20] Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Castillo-Páez v. Peru, Julgamento de 3 de novembro de 1997 (Méritos).

[21] Código de Processo Penal da Nação Argentina, art. 286.

[22] Novo Código de Processo Penal do Chile de 12 de outubro de 2000, art. 130.

[23] Infelizmente, a reforma não mudará a situação de um número relevante de pessoas presas no Brasil sob mandado judicial, uma lacuna que deve ser suprida pelo Congresso Nacional oportunamente.

[24] Código de Processo Penal, art.157, 3 de outubro de 1941.

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