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Haitianos são enviados de volta a um país em caos

As deportações são inseguras devido a crise humanitária e a violência

Um haitiano repatriado dos Estados Unidos ao Haiti em dezembro de 2021 escreveu em um moletom os países que havia cruzado antes de chegar aos EUA, começando pela República Dominicana. A escrita à direita diz, em crioulo: “Este é o Senhor que nos resgata, é ele quem criou o céu e a terra”. © 2021 IOM

(Washington, DC) – Os Estados Unidos e todos os outros países deveriam parar de expulsar ou deportar pessoas para o Haiti, onde enfrentam um alto risco de sofrerem violência e onde não têm acesso efetivo à proteção ou à justiça, disse hoje a Human Rights Watch. O Haiti sofre com níveis alarmantes de assassinatos e sequestros por gangues que controlam regiões estratégicas do país, agravados pela impunidade de longa data por crimes e abusos de direitos humanos, em meio a uma crise humanitária.

“É inconcebível que qualquer governo envie pessoas para o Haiti considerando as a deterioração das condições de segurança no país e o maior risco à vida e à integridade física para todos”, disse César Muñoz, pesquisador sênior das Américas na Human Rights Watch. “Nenhum governo deve devolver as pessoas ao Haiti. E os Estados Unidos, que respondem pela grande maioria dos retornos, deveriam acabar com o uso desnecessário e ilegítimo de um regulamento de saúde pública para expulsões abusivas de haitianos”.

A Human Rights Watch entrevistou 49 pessoas durante uma visita ao Haiti em dezembro de 2021. Dentre elas, 9 haitianos expulsos dos EUA e da República Dominicana, representantes de agências das Nações Unidas, membros da sociedade civil e servidores dos poderes judiciário e executivo haitianos. Estes incluem o primeiro-ministro Ariel Henry, o ministro da Justiça Berto Dorcé, o ministro do Interior Liszt Quitel, o ouvidor nacional Renan Hedouville e o inspetor-geral de polícia Fritz Saint Fort. A Human Rights Watch entrevistou mais 16 pessoas remotamente antes e depois da visita e revisou dados e relatórios da ONU, da sociedade civil e da imprensa.

As repatriações para o Haiti são atualmente uma ameaça à vida e continuarão assim até que as condições de segurança no Haiti melhorem, disse a Human Rights Watch. O Haiti tem enfrentado uma terrível situação de insegurança, incluindo a perda do controle governamental de regiões estratégicas para perigosas gangues armadas, as quais aparentemente são financiadas por políticos e subornam policiais. A violência agravou uma já grave crise humanitária.

O Haiti passa por uma profunda crise política e constitucional. O primeiro-ministro Henry, que atua como chefe de governo, não foi eleito, mas sim nomeado pelo ex-presidente Jovenel Moïse, dois dias antes do assassinato de Moïse em 7 de julho de 2021. O primeiro-ministro governa por decreto, sem mandato constitucional. O Parlamento deixou de funcionar e o sistema de justiça mal consegue operar num contexto de colapso da segurança pública e das instituições.

A impunidade para os crimes é a regra. “No Haiti, juízes ameaçados têm duas opções: deixar o país ou continuar com as investigações e serem assassinados por isso”, disse um membro do Conselho Superior de Justiça, órgão que administra o sistema de justiça, à Human Rights Watch.

Dadas as condições de segurança no Haiti, grupos da sociedade civil e organizações que prestam assistência aos repatriados expressaram preocupação com o risco de sequestro e extorsão por parte de gangues, que podem acreditar que os deportados têm dinheiro para viajar ou parentes no exterior que poderiam custear resgates. No entanto, não existe atualmente nenhum sistema para rastrear e apoiar os retornados.

De 1º de janeiro de 2021 a 26 de fevereiro de 2022, 25.765 pessoas foram expulsas ou deportadas para o Haiti, segundo dados coletados pela Organização Internacional para as Migrações (OIM). Desses, os EUA deportaram 79% – 20.309 pessoas – enquanto Bahamas, Cuba, Ilhas Turks e Caicos, México e outros países devolveram o restante.

De 19 de setembro de 2021 – quando a OIM começou a coletar dados detalhados – até 14 de fevereiro de 2022, os EUA devolveram cerca de 2.300 crianças com pais haitianos, mas que nasceram em outro país, a maioria no Chile.

A maioria das pessoas devolvidas pelos EUA havia deixado o Haiti anos atrás, fugindo de uma situação econômica e de segurança já difícil, e morava no Chile ou no Brasil. Alguns sofreram violência, incluindo abuso sexual, a caminho dos EUA.

Os Estados Unidos deveriam interromper imediatamente o uso inapropriado do Título 42, uma norma sanitária dos EUA, para expulsar pessoas para o Haiti e outros lugares, disse a Human Rights Watch. Dados da OIM mostram que de 19 de setembro até o final de fevereiro, 6% dos repatriados pelos EUA para o Haiti foram deportados e o restante foi expulso com base no Título 42. O governo do ex-presidente Donald Trump utilizou essa norma durante a pandemia de Covid-19 para negar o direito de solicitar refúgio nos Estados Unidos às famílias, crianças e adultos que chegam à fronteira sul, e o governo do presidente Joe Biden continuou este uso. Em 11 de março, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês) dos EUA encerraram sua autorização para expulsar crianças desacompanhadas com base no Título 42.

Os EUA normalmente não têm dado às pessoas devolvidas ao Haiti com base no Título 42 a oportunidade de expressar seus medos de perseguição ou violência ou de solicitar de refúgio, violando o direito internacional.

Em 4 de março, o Tribunal de Apelações dos EUA para o Circuito do Distrito de Columbia concluiu que “de uma perspectiva de saúde pública, com base no registro limitado diante de nós, está longe de ser claro que a ordem dos CDC sirva a algum propósito”, em referência à ordem de março de 2020 para o CDC aplicar o Título 42.

Em uma decisão que pode entrar em vigor em abril, o tribunal ordenou que o governo Biden parasse de usar o Título 42 para expulsar sumariamente famílias com crianças para países onde enfrentariam perseguição ou tortura.

As agências da ONU e o Escritório Nacional de Migração do Haiti (Biwo Nasyonal Migrasyon, em crioulo) prestam alguma assistência às pessoas repatriadas no aeroporto, incluindo uma ajuda em dinheiro, alimentos e produtos de higiene, mas não monitoram sua situação depois de deixá-los nas estações de ônibus ou hotéis, disseram funcionários da ONU e autoridades haitianas à Human Rights Watch.

Uma pesquisa realizada pela equipe da OIM com 383 retornados que puderam ser contatados por telefone entre janeiro e fevereiro mostrou que 69% deles não se sentiam seguros no Haiti. Dos entrevistados, 84% queriam deixar o país novamente por causa da crise econômica e de segurança.

Além de interromper as repatriações, os governos estrangeiros deveriam trabalhar com as autoridades haitianas, agências da ONU e doadores para criar um programa abrangente de reintegração daqueles que foram repatriados, disse a Human Rights Watch. O programa deveria atender às necessidades específicas dos retornados, incluindo trabalho, segurança, reagrupamento familiar, serviços para sobreviventes de violência de gênero, incluindo acesso à contracepção de emergência e apoio a crianças segundo o princípio do melhor interesse. Em 3 de março, um representante da OIM disse à Human Rights Watch que elaboraram um programa de reintegração e estão buscando apoio de doadores para colocá-lo em operação.

“Haitianos e seus filhos, muitos nascidos no exterior, estão sendo devolvidos a um país em caos”, disse Muñoz. “Os governos estrangeiros deveriam interromper todas as repatriações e deveriam ajudar a estabelecer um programa de reintegração, em colaboração com as autoridades haitianas, para monitorar a situação dos que já retornaram, ajudá-los a acessar serviços básicos, prestar assistência a seus filhos e intervir se suas vidas estiverem em risco."

Para mais informações sobre as investigações da Human Rights Watch, veja abaixo.

Pessoas expulsas ou deportadas dos Estados Unidos se reúnem em torno de uma tenda da OIM no aeroporto de Porto Príncipe em dezembro de 2021. © 2021 Human Rights Watch.

Resumo das Conclusões da Human Rights Watch

Os países da região, principalmente os Estados Unidos, continuam enviando milhares de pessoas de volta ao Haiti, incluindo crianças nascidas em outros países, apesar das péssimas condições do país. As seções a seguir fornecem dados sobre expulsões e deportações para o Haiti, bem como descrições das condições de detenção nas instalações de fronteira dos EUA. A Human Rights Watch também detalhou as graves crises que tornam inconcebível enviar pessoas de volta a um país que é claramente inseguro. Gangues violentas controlam e aterrorizam bairros inteiros, especialmente em torno de Porto Príncipe; as instituições democráticas entraram em colapso; o sistema de justiça é incapaz de fornecer justiça; e a impunidade é esmagadora. As crises de segurança, política e justiça agravaram uma severa situação humanitária.

Detenção e Expulsão ou Deportação para o Haiti

De 1º de janeiro de 2021 a 26 de fevereiro de 2022, 25.765 pessoas foram devolvidas ao Haiti de avião ou barco, incluindo 4.674 crianças, segundo a OIM. No total, 18% dos retornados eram crianças, mas essa proporção aumentou de 16% em 2021 para 25% nos primeiros meses de 2022.

Os dados da OIM também mostram que de janeiro de 2021 até o final de fevereiro de 2022, 1.142 pessoas foram devolvidas por mar: a Guarda Costeira dos EUA interceptou 794 pessoas no mar e as encaminhou de volta, e Cuba enviou 348 haitianos de volta de barco depois de chegarem ao seu território, também de barco.

A grande maioria foi devolvida a partir de setembro de 2021, quando os EUA iniciaram as repatriações para o Haiti desde Del Rio, Texas.

Os EUA enviaram 20.309 pessoas de volta – o que representa 79% de todas as repatriações – incluindo 5.004 crianças. Os EUA não enviaram crianças desacompanhadas em voos para o Haiti, mas pelo menos duas crianças desacompanhadas foram interceptadas e enviadas de volta em barcos pela Guarda Costeira dos EUA, disse a OIM. Pelo menos outras 10 crianças desacompanhadas foram devolvidas por Cuba e Bahamas.

De 19 de setembro de 2021 a 14 de fevereiro de 2022, os EUA enviaram ao Haiti cerca de 2.300 crianças nascidas no exterior de pais haitianos, informou a OIM. Destas, cerca de 1.600 nasceram no Chile; cerca de 580 no Brasil, e cerca de 140 em outros países, incluindo Bahamas, Argentina, México e Venezuela.

A maioria dos haitianos retornados pelos EUA deixou seu país anos atrás, fugindo da violência, da falta de oportunidades econômicas ou das consequências do terremoto devastador em 2010, segundo a OIM e os retornados entrevistados pela Human Rights Watch. A maioria morava no Chile ou no Brasil. Eles disseram que deixaram esses países por causa da discriminação, da desaceleração econômica relacionada à Covid-19 e da dificuldade, no Chile, de obter documentos legais. Sabendo da crise econômica e de segurança no Haiti, decidiram seguir para os Estados Unidos, atravessando o hemisfério de ônibus e a pé, disseram à OIM e à Human Rights Watch.

Haitianos detidos nas prisões de fronteira dos EUA – que foram posteriormente expulsos com base no Título 42 – relataram condições adversas, incluindo comida insuficiente, falta de acesso a chuveiros ou produtos de higiene por semanas e falta de assistência médica, mesmo para crianças severamente debilitadas pela longa viagem cruzando o continente, disseram agências da ONU e entrevistados à Human Rights Watch. Funcionários da OIM em Porto Príncipe disseram à Human Rights Watch que tiveram que tratar algumas crianças que chegavam com desidratação.

Alguns retornados relataram que agentes de fronteira dos EUA levaram roupas, telefones, dinheiro e documentos pessoais, e que receberam alguns, mas não todos os seus pertences quando chegaram ao Haiti. Uma família disse à Human Rights Watch que um guarda dos EUA rasgou seus documentos pessoais na frente deles, incluindo as certidões de nascimento chilenas de seus filhos.

A OIM e a Human Rights Watch receberam testemunhos de que casais são separados e mantidos em diferentes centros de detenção na fronteira dos EUA, e não são informados sobre a situação um do outro. Pessoas expulsas do Texas – mas não de alguns outros estados – foram algemadas no avião, disseram os repatriados e representantes da OIM à Human Rights Watch. Autoridades haitianas retiraram as algemas quando os retornados chegaram.

Violação do Direito Internacional e Doméstico pelas Autoridades dos EUA

As leis de direitos humanos e de refugiados dos EUA e internacionais exigem que as autoridades analisem os pedidos de refúgio individualmente a fim de assegurar que eles não sejam enviados a lugares onde seriam expostos a tortura ou perseguição, ou onde suas vidas ou liberdade seriam ameaçadas. A Human Rights Watch entrevistou nove repatriados no aeroporto de Porto Príncipe no momento de chegada, após serem expulsos dos EUA com base no Título 42. Todos eles disseram que não tiveram essa análise.

Um deles disse que informou a um guarda do centro de detenção dos EUA onde estava detido que queria solicitar refúgio, mas o guarda respondeu: “Aqui, você não tem direitos”. A OIM coletou depoimentos semelhantes, indicando que as autoridades dos EUA não permitiram que haitianos sob custódia solicitassem refúgio ou contatassem um advogado ou o consulado haitiano, de acordo com um resumo de depoimentos analisado pela Human Rights Watch.

Alguns repatriados disseram à equipe da OIM e à Human Rights Watch que servidores dos EUA os colocaram em aviões sem informar o destino. Eles não receberam nenhum aviso de que estavam indo para o Haiti.

O governo Biden tem conhecimento de que está enviando haitianos para um país que não é seguro. Em maio de 2021, o Departamento de Segurança Interna dos EUA redesignou o Haiti para Status de Proteção Temporária (TPS, na sigla em inglês) “devido a condições extraordinárias e temporárias no Haiti que impedem que os cidadãos retornem com segurança”. Embora pela lei o TPS se aplique apenas aos haitianos que já se encontram no país no momento da designação, a lógica subjacente e justificativa por trás da designação baseiam-se nas condições do Haiti que impedem qualquer cidadão haitiano de retornar em segurança durante o status temporário. Se o Haiti é muito perigoso para devolver haitianos que estavam nos EUA no momento da designação do TPS, é igualmente perigoso para os haitianos que entram nos EUA após a designação do TPS.

Um alerta de risco para viagens de nível 4 da embaixada dos EUA, o mais grave, está em vigor para o Haiti desde agosto de 2021. O aviso diz: “Não viaje para o Haiti devido a sequestro, crime, agitação civil e Covid-19”.

Vários funcionários e agências dos EUA expressaram fortes preocupações sobre a política dos EUA.

Em agosto de 2021, o escritório de direitos civis do Departamento de Segurança Interna alertou para o “forte risco” de que enviar pessoas de volta ao Haiti violasse as obrigações de direitos humanos dos EUA sob a lei doméstica e internacional por causa do perigo que enfrentavam lá. Em setembro de 2021, Daniel Foote, enviado especial dos EUA para o Haiti, renunciou, denunciando a “decisão desumana e contraproducente de deportar milhares de refugiados haitianos e imigrantes ilegais para o Haiti”.

Ao deixar seu cargo em outubro de 2021, um assessor jurídico sênior do Departamento de Estado, Harold Koh, chamou o uso do Título 42 de “desumano” e “ilegal” – uma violação da obrigação legal de “não expulsar ou devolver ('refouler') indivíduos que temem perseguição, morte ou tortura, especialmente migrantes que fogem do Haiti”.

As agências da ONU também deram o alerta.

Em setembro de 2021, a OIM, a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e o Escritório de Direitos Humanos da ONU (ACNUDH) disseram que os países deveriam parar de expulsar haitianos sem uma avaliação adequada de suas necessidades de proteção individual, defender seus direitos humanos fundamentais, e oferecer mecanismos de proteção ou acesso legal às vias migratórias regulares. Especialistas em direitos humanos da ONU alertaram, no mês seguinte, que “deportações sistemáticas e em massa” e “expulsões coletivas” dos EUA para o Haiti não apenas violam o direito internacional, mas “continuam uma história de exclusão racial de migrantes e refugiados negros haitianos nas portas de entrada dos EUA”.

Uma rua em Porto Príncipe em dezembro de 2021. © 2021 César Muñoz Acebes/Human Rights Watch.

Violência Desenfreada de Gangues

A situação de segurança no Haiti deteriorou-se dramaticamente nos últimos anos, à medida que gangues violentas se fortalecem em todo o país. Gangues controlam áreas estratégicas da região metropolitana de Porto Príncipe, comumente conhecidas como “zonas vermelhas” ou “zonas sem lei” no Haiti, cercando parcialmente a capital. O controle das áreas costeiras de Porto Príncipe permite que gangues recebam armas por mar, disseram representantes da sociedade civil.

As gangues interromperam severamente a atividade econômica em todo o Haiti entre meados de outubro e meados de novembro, bloqueando o abastecimento de combustível do porto da capital, afetando hospitais, abastecimento de água, comunicações, eliminação de resíduos e assistência humanitária, disseram trabalhadores da saúde e representantes da ONU à Human Rights Watch. As gangues continuam sendo capazes de obstruir as principais rotas de abastecimento e terminais de combustível do país “à vontade”, alertaram agências da ONU em fevereiro.

Gangues controlam as duas estradas que ligam a capital à República Dominicana, ao leste, e à península sul do Haiti, que fica a oeste de Porto Príncipe, que sofreu um terremoto devastador em agosto de 2021. Assim, eles “separaram” as quatro províncias do sul do resto do país, disse o ministro da Justiça Berto Dorcé à Human Rights Watch em dezembro.

Cerca de 1,1 milhão de pessoas que vivem em “zonas sem lei” estão à mercê das gangues. Em disputas com outras gangues pelo controle de bairros, homens armados atacaram ônibus e usaram franco-atiradores para atirar indiscriminadamente contra civis, informaram agências da ONU. Em algumas das “zonas sem lei”, não há presença do governo, sem escolas, sem polícia e sem serviços de saúde, nem mesmo atendimento de emergência, disseram agências da ONU, organizações não-governamentais e profissionais de saúde à Human Rights Watch.

Cerca de 19.000 pessoas fugiram da violência nesses bairros, disse a OIM à Human Rights Watch, e algumas estão sobrevivendo em acampamentos improvisados em outras partes da cidade. Alguns acampamentos estão em áreas inseguras, onde as agências da ONU não conseguem fornecer assistência, disseram representantes da OIM.

A polícia relatou 1.615 assassinatos e 655 sequestros em 2021 no país, mas representantes da sociedade civil e da ONU disseram que muitos crimes são subnotificados.

A Comissão Episcopal Nacional de Justiça e Paz, uma organização não governamental, disse que documentou 659 assassinatos em 2021, apenas na região metropolitana de Porto Príncipe, sem incluir casos nas “zonas sem lei”, onde não podem entrar para fazer o levantamento.

O Centro de Análise e Pesquisa em Direitos Humanos (CARDH, na sigla em inglês), outra organização não-governamental haitiana, compilou uma lista de 949 sequestros no país em 2021 – contando apenas os casos que apareceram na imprensa ou foram denunciados diretamente à organização. Os alvos de sequestro por resgate incluem não apenas os ricos, mas praticamente qualquer pessoa. As mulheres que são sequestradas são estupradas rotineiramente, disseram fontes da ONU e do setor de saúde.

As gangues supostamente usam violência sexual para aterrorizar e controlar bairros e sujeitam jovens a abuso sexual como um ritual de iniciação, disseram agências da ONU. Mais de 20% das meninas e meninos do país sofreram violência sexual, informou o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH).

Os sobreviventes muitas vezes temem denunciar crimes às autoridades, suspeitando de ligações entre gangues e a polícia. O inspetor-geral de polícia do Haiti, Fritz Saint Fort, que supervisiona as investigações disciplinares, disse à Human Rights Watch que alguns policiais trabalham como intermediários entre traficantes de armas e gangues, enquanto outros são informantes de gangues. “Eles são muito perigosos. Eles passam informações sobre as operações policiais para as gangues”, disse.

Várias autoridades descreveram ligações entre gangues e políticos. Renan Hedouville, diretor do Escritório de Proteção ao Cidadão do Haiti, disse: “As gangues podem fazer qualquer coisa, porque são protegidas”. Robert Sanders, conselheiro político da embaixada dos EUA em Porto Príncipe, disse: “As gangues são financiadas por políticos para fins comerciais e políticos”. A ACNUDH disse que o governo haitiano precisa combater “o patrocínio político de gangues armadas”.

Uma rua em Porto Príncipe em dezembro de 2021. © 2021 César Muñoz Acebes/Human Rights Watch.

Colapso das Instituições Democráticas

Um colapso gradual das instituições democráticas deixou o Haiti sem liderança eleita. O país não tem um parlamento em funcionamento, pois o ex-presidente Moïse se recusou a organizar eleições legislativas em 2020, quando expiraram os mandatos de dois terços dos 30 senadores. Os 10 senadores cujos mandatos ainda não expiraram são atualmente as únicas autoridades que ocupam cargos nacionais eleitos no Haiti.

O Conselho Superior da Magistratura do Haiti decidiu em 6 de fevereiro de 2021 que o mandato do ex-presidente Moïse terminou naquele dia, após concluir que ele havia iniciado seu mandato em fevereiro de 2016, após vencer as eleições de outubro de 2015. Mas o ex-presidente Moïse se recusou a cumprir a decisão. Ele afirmou que, como as alegações de fraude eleitoral levaram a uma segunda votação nacional em novembro de 2016, que ele também venceu, seu mandato só começou em fevereiro de 2017 e terminaria em 7 de fevereiro de 2022.

O presidente Moïse foi assassinado em 7 de julho de 2021. Alguns dias antes, ele havia nomeado Ariel Henry como primeiro-ministro.

O primeiro-ministro Henry não recebeu aprovação parlamentar, como exige a Constituição antes que um candidato possa assumir. “Estamos fora da Constituição”, disse o primeiro-ministro Henry à Human Rights Watch em dezembro.

Em setembro, o promotor-chefe Bedford Claude alegou que o primeiro-ministro Henry havia feito contato telefônico com um dos principais suspeitos acusado de orquestrar o assassinato do ex-presidente Moïse, horas após o assassinato. Claude pediu a um juiz que recebesse as denúncias contra o primeiro-ministro Henry em conexão com o assassinato.

O primeiro-ministro Henry, que nega a alegação, demitiu Claude. Uma investigação do New York Times disse que o suspeito se encontrou com o primeiro-ministro Henry duas vezes na residência do primeiro-ministro após o assassinato, enquanto o suspeito era procurado pela polícia. Não houve decisão judicial sobre o pedido de Claude para aceitar a acusação contra o primeiro-ministro Henry.

O primeiro-ministro Henry continua à frente do governo, mesmo após cessado o prazo que o ex-presidente Moïse considerava para o fim de seu mandato. Até o momento, ainda não foram fixadas datas para as eleições presidenciais. Não há consenso sobre quem deve ser membro do Conselho Eleitoral Provisório, o órgão encarregado de organizar as eleições, e a grave situação de insegurança em todo o Haiti representa grandes desafios para a realização de uma votação. Agora não é seguro para os candidatos façam campanha em grande parte do país – e para que as pessoas votem. Até altos funcionários do governo tornaram-se alvos. Em janeiro de 2022, homens armados atiraram contra o primeiro-ministro Henry e sua comitiva quando saíam da catedral em Gonaïves, matando uma pessoa e ferindo duas.

Falta de Justiça

O sistema de justiça do Haiti mal funciona. O presidente Moïse destituiu arbitrariamente três juízes da Suprema Corte em fevereiro de 2021 e nomeou novos juízes sem seguir os procedimentos estabelecidos na Constituição. Apenas 5 dos 12 ministros permaneciam em seus cargos em janeiro de 2022 e não podiam realizar julgamentos, pois é necessário um mínimo de 7 juízes para decidir um caso. Os mandatos de dois dos cinco juízes restantes expiraram em fevereiro.

No Haiti, o presidente precisa renovar os mandatos dos juízes que conduzem os inquéritos judiciais (juges d’instruction), mas o ex-presidente Moïse não cumpriu essa tarefa. Dois terços desses juízes agora têm nomeações que expiraram, disse um membro do Conselho Superior de Justiça. Eles ainda são remunerados, mas não podem realizar nenhuma diligência oficial, de qualquer natureza.

A crise de segurança agravou esses problemas. Alguns juízes não vão a seus escritórios há seis meses por medo de sequestros e balas perdidas, disseram várias fontes judiciais. “Eles literalmente abandonaram seus cargos, porque os tribunais estão localizados em zonas vermelhas e não há como protegê-los”, disse uma autoridade judicial. A estrada que leva ao Palais de Justice, o principal complexo judiciário do Haiti – que abriga vários tribunais – é controlada por gangues, impossibilitando a realização de audiências no local, um representante da Associação Nacional de Funcionários Jurídicos do Haiti disse à Human Rights Watch.

O representante disse que os ladrões rotineiramente invadem os tribunais penais de Porto Príncipe para roubar arquivos de casos. Esses arquivos estão apenas em papel, disse ele, sem backup digital. Em 27 de outubro de 2021, por exemplo, ladrões entraram no Palais de Justice e roubaram o arquivo do caso da investigação sobre o assassinato em agosto de 2020 de Monferrier Dorval, chefe da Ordem dos Advogados de Porto Príncipe. Os ladrões também roubaram as declarações de bens de muitos funcionários governamentais de alto nível. Todas as cópias do arquivo do caso e das declarações de bens eram mantidas no mesmo cofre, disseram funcionários da justiça.

Vários juízes, assessores e advogados foram ameaçados, disseram representantes da ONU – assim como funcionários e advogados. Um membro do Conselho Superior de Justiça disse que interesses econômicos poderosos empregam e financiam gangues armadas e as instruem a ameaçar oficiais de justiça, a bloquear investigações.

Entre os que foram ameaçados estão dois juízes e dois funcionários que investigam o assassinato do ex-presidente Moïse. Eles receberam ligações dizendo que seriam mortos caso não implicassem certas pessoas no assassinato, disse um oficial do judiciário. Nenhum recebeu proteção policial, disseram oficiais de justiça à Human Rights Watch. Pelo menos um dos quatro relatou as ameaças ao promotor-chefe e à polícia por escrito em julho de 2021, mas assessores de justiça com conhecimento do caso disseram em dezembro que desconheciam qualquer ação da polícia. Um dos juízes deixou o país.

Em outubro de 2021, assaltantes atiraram no carro do juiz que na época era o encarregado do caso Moïse. Eles invadiram o escritório do juiz e tentaram, mas não conseguiram, abrir o cofre onde ele guardava documentos confidenciais.

A crise política e institucional agravou a impunidade já desenfreada.

Desde 2018, organizações da sociedade civil haitiana têm documentado o assassinato de centenas de pessoas, sendo ao menos 18 massacres, supostamente cometidos por gangues, na região metropolitana de Porto Príncipe. O governo dos EUA emitiu sanções contra um policial que virou líder de gangue e dois ex-funcionários do governo em conexão com o massacre de 71 pessoas no bairro de La Saline em 2018. Ninguém foi denunciado por esse massacre, ou qualquer um dos outros 17.

De outubro de 2020 a setembro de 2021 – o último ano judicial – apenas 226 julgamentos criminais foram realizados no país de 11 milhões de pessoas, disse a Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos (RNDDH, na sigla em francês), uma organização não-governamental haitiana. Em algumas jurisdições, os tribunais não realizam audiências sobre casos criminais há três anos, informou o ACNUDH.

Enquanto isso, 81% das mais de 11.000 pessoas detidas aguardam julgamento. Algumas delas aguardam há anos. Cadeias e prisões têm mais de três vezes o número de detentos para os quais foram construídas. Um relatório da ONU de junho de 2021 disse que os detidos foram mantidos em condições “desumanas” e submetidos a maus-tratos e tortura.

A corrupção continua a prejudicar o sistema de justiça, disseram oficiais de justiça. Em 2017, o ex-presidente Moïse obteve autoridade legal para nomear o chefe da Unidade de Inteligência Financeira (UCREF, na sigla em francês), encarregada de combater a corrupção no sistema judicial e em outros lugares. Representantes da RNDDH e do Nou Pap Dòmi, outras organizações não-governamentais, disseram que a falta de independência da unidade em relação ao poder executivo a torna ineficaz. A estratégia nacional anticorrupção do Haiti terminou em 2019 e o país não adotou uma nova.

Lixo se acumula em uma rua em dezembro de 2021 em Porto Príncipe, Haiti, que sofre com serviço de coleta de lixo e saneamento inadequados. © 2021 César Muñoz Acebes/Human Rights Watch.

Situação Humanitária Terrível

A crise política e de segurança está agravando uma situação humanitária crítica.

Em 14 de agosto de 2021, um terremoto de magnitude 7,2 devastou a península sudoeste do Haiti, matando mais de 2.200 pessoas e afetando mais de 800.000. Causou danos e perdas equivalentes a 11% do PIB, incluindo danos ou destruição de 59 unidades de saúde e mais de 137.000 casas. Danificou ou destruiu gravemente 308 escolas, afetando 100.000 crianças e professores. Desde o terremoto, mais de 30.000 pessoas do sul da península permanecem deslocadas.

As gangues estão piorando as coisas. O bloqueio de combustível em outubro e novembro interrompeu a entrega de assistência e, por quase dois meses, o controle de gangues da única estrada de Porto Príncipe tornou impossível para as agências da ONU enviar ajuda por terra à península, disse o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA na sigla em inglês). Sob escolta armada, as agências puderam retomar a ajuda no início de dezembro.

No país como um todo, quase 24% da população ganha abaixo da linha de extrema pobreza de US$ 1,23 por dia, informou o ACNUDH. Cerca de 4,4 milhões de pessoas, ou quase 46% da população, enfrentam insegurança alimentar aguda. Cerca de 217.000 crianças sofrem de desnutrição moderada a grave.

“O governo não fornece serviços básicos”, disse o primeiro-ministro Henry. De acordo com o direito internacional, os países são obrigados a garantir a realização progressiva dos direitos econômicos e sociais, incluindo os direitos à saúde e à alimentação, bem como o acesso à água e ao saneamento.

O governo haitiano estimou que precisa de US$ 2 bilhões para se recuperar do terremoto. Os doadores prometeram US$ 600 milhões em uma conferência em fevereiro.

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