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Brasil sofre uma epidemia própria de brutalidade policial

Mortes causadas por policiais aumentam o sofrimento e a raiva em meio a pandemia

Publicado em: Americas Quarterly
Manifestantes durante protesto contra a violência policial em frente ao Palácio do Guanabara, residência oficial do governador do Rio de Janeiro, em 31 de maio de 2020. © 2020 Dikran Junior / AGIF via AP

Quase dois milhões de moradores de comunidades mais pobres do Rio de Janeiro lutam para lidar com duas ameaças letais. A primeira, a Covid-19, afeta a todos nós, mas representa um risco elevado para aqueles que vivem em ruas apertadas, onde observar o distanciamento social é difícil e onde casas carecem de ventilação, saneamento e acesso à água potável adequados. A maioria dos moradores de favelas depende de empregos informais e não pode trabalhar de casa. Cerca de 300 moradores morreram em decorrência do coronavírus.

A outra ameaça decorre integralmente da ação humana. Nos primeiros quatro meses de 2020, ações da polícia do Rio deixaram 606 mortos. Em abril, com as medidas de isolamento, roubos e outros crimes caíram drasticamente, mas a violência policial aumentou. A polícia matou cerca de seis pessoas por dia, um aumento de 43 por cento em relação ao mesmo mês no ano passado. Policiais foram responsáveis ​​por 35 por cento de todas as mortes violentas intencionais no estado do Rio de Janeiro em abril.

Para colocar isso em perspectiva, se a polícia nos Estados Unidos matasse a um ritmo semelhante, seria responsável ​​por mais de 36.000 mortes por ano. No entanto, a polícia dos EUA mata, com arma de fogo, cerca de 1.000 pessoas por ano. Esse número inclui casos em que o uso de força letal foi excessivo e injustificado, e muitas vezes indicativo de flagrante discriminação contra afro-americanos. Alguns desses casos levaram a protestos e tumultos, como aconteceu com a recente morte de George Floyd.

Mais de três quartos das quase 9.000 pessoas mortas pela polícia do Rio na última década eram homens negros. Em todo o país, a polícia matou mais de 33.000 pessoas nos últimos dez anos. Houve protestos, particularmente nas comunidades que sofrem o impacto dessa violência, mas não como as grandes manifestações de indignação que têm sido observadas nos Estados Unidos.

Os números por si só não conseguem dimensionar tamanha tragédia. Em 18 de maio, três policiais, supostamente em uma perseguição de suspeitos, entraram em uma casa no Complexo do Salgueiro, onde seis primos desarmados se reuniam para brincar. Eles abriram fogo e atingiram João Pedro Matos Pinto, de 14 anos, nas costas. Um parente levou João Pedro até um helicóptero usado pela polícia na operação, que o levou embora. A família passou mais de 17 horas sem saber seu paradeiro ou estado e, por fim, encontrou o corpo de João Pedro já no Instituto Medical Legal (IML).

Três dias depois, a polícia abriu fogo enquanto professores, alunos e outros voluntários entregavam cestas de comida, próximo a uma escola no Morro da Providência, para famílias com fome por conta das consequências econômicas da pandemia de Covid-19. Os policiais disseram que respondiam a tiros de suspeitos não identificados. Na ação morreu Rodrigo Cerqueira, um jovem de 19 anos, cujo professor descreveu como um "menino maravilhoso", que sempre ficava na primeira fila da escola.

Em depoimento no inquérito da Polícia Civil, os policiais envolvidos não mencionaram a ação social de distribuição de alimentos, observou o jornal Extra. Os policiais alegaram, como costumam fazer em casos de mortes por policiais no Rio de Janeiro, que encontraram uma arma e drogas com a vítima. A família nega que ele estivesse envolvido em qualquer atividade criminosa.

A plataforma digital Fogo Cruzado, que coleta dados sobre violência, diz que tiroteios envolvendo a polícia também interromperam outras quatro ações de distribuição de cestas básicas.

Nas operações de 18 e 21 de maio, a polícia não realizou prisões e nenhum policial ficou ferido. A polícia costuma se isentar da culpa em casos de mortes, dizendo que abriram fogo em legítima defesa. Às vezes isso é verdade, pois a polícia enfrenta facções perigosas. Mas, muitas vezes, não é.

Ninguém diria que as regras sobre o uso da força letal em Providência ou Salgueiro são as mesmas observadas em Ipanema, Leblon e outros bairros nobres do Rio de Janeiro. Pesquisas da Human Rights Watch ao longo de mais de uma década mostram que, em bairros pobres, a polícia abre fogo de forma imprudente, sem levar em consideração a vida de quem está por perto. Outras vezes, a polícia executa pessoas intencionalmente.

O fato de a polícia agir de maneira tão abusiva somente em bairros pobres talvez explique a falta de grandes protestos em resposta às mortes em uma sociedade tão desigual como a brasileira.

As operações policiais que resultam em mortos e feridos fazem com que os moradores de bairros pobres vejam os policiais como inimigos e uma ameaça para seus filhos. Essa brutalidade nada contribui para desmantelar grupos criminosos. Em vez disso, alimenta um ciclo de violência que também coloca em risco os próprios policiais.

Quando o presidente Jair Bolsonaro e o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, incentivam a polícia a matar ainda mais, como fizeram em declarações públicas, eles apenas encorajam policiais corruptos e abusivos e, ao mesmo tempo, prejudicam e põem em perigo os policiais que respeitam a lei.

Em uma decisão de 17 de abril, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Edson Fachin, determinou que a polícia do Rio de Janeiro preservasse as cenas do crime e parasse de levar os corpos a hospitais como um artifício para destruir evidências. A decisão estabelece que os peritos incluam fotografias em seus relatórios.

A necessidade de um ministro da Suprema Corte decidir pela observância desses passos básicos revela por si só as graves falhas nas investigações de mortes causadas pela polícia, documentadas pela Human Rights Watch em dezenas de casos ao longo dos anos. O resultado é a impunidade predominante por abusos policiais no Rio de Janeiro.

As autoridades do estado do Rio de Janeiro precisam elaborar e colocar em prática um plano com passos e metas concretas para reduzir a letalidade policial. E quando essas mortes ocorrem, o Ministério Público do Rio de Janeiro precisa garantir investigações rápidas, minuciosas e independentes, inclusive instaurando suas próprias investigações, além daquelas realizadas pela polícia civil.

Ainda que a Covid-19 continue a afligir os moradores das favelas por um longo período, políticas efetivas de saúde pública devem ajudar a controlar a situação. Mas se policiais responsáveis por tiroteios imprudentes e execuções à sangue frio seguirem impunes, continuaremos perdendo jovens inocentes no Rio de Janeiro sem fim à vista.

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