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Policiais patrulham a favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. 14 de setembro de 2012. © 2012 Reuters

Em 2015, o filho de 16 anos de Adriana Perez da Silva e quatro amigos voltavam para casa após um dia no parque quando a polícia atirou no carro em que estavam, matando todos. Adriana acredita que eles foram mortos porque eram negros. Como pesquisador da Human Rights Watch de abusos policiais na América Latina, entrevistei muitos sobreviventes e parentes de vítimas. Mas a entrevista dela me marcou.

Brasileiros negros têm quase três vezes mais chances de serem mortos pela polícia do que brancos. No ano passado, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a polícia matou 6.416 pessoas em todo o país. No estado do Rio de Janeiro, um dos mais violentos do Brasil, a polícia matou 1.245 pessoas.

A violência policial no Brasil é tão gritante que foi motivo de destaque em um recente relatório das Nações Unidas que exortou países a tomarem medidas para erradicar o racismo sistêmico contra pessoas afrodescendentes. O relatório pediu aos Estados que responsabilizassem agentes de segurança por abusos.

No Brasil, isso significa que o Ministério Público deveria investigar homicídios cometidos por policiais – e não a própria polícia, como é a prática. O Rio de Janeiro, em particular, deveria criar um plano abrangente com medidas que promovam a responsabilização da polícia por seus abusos. O Supremo Tribunal Federal (STF) está considerando determinar que o governo do estado implemente reformas. Sem uma ação decisiva para acabar com a impunidade por abusos, a brutalidade policial continuará a afetar desproporcionalmente pessoas negras.

O assassinato desses cinco jovens no Rio é emblemático em um país atormentado pela violência policial, pelo racismo sistêmico e pela impunidade. O que é incomum neste caso é que, em grande parte devido à atenção que recebeu, houve uma ação criminal e prisão dos policiais acusados dos crimes, o que está longe de ser a regra.

Desde então, as coisas só pioraram. Eu tenho documentado casos no Rio de Janeiro há cerca de sete anos. Quando se trata do uso da força letal, existem, de fato, duas práticas policiais: uma prática de atirar apenas em legítima defesa nos bairros de classe média e alta, e outra de atirar primeiro e perguntar depois em comunidades pobres. Muitos policiais fazem isso sem medo de repercussões.

Vimos isso quando a polícia invadiu a comunidade de Jacarezinho , no Rio de Janeiro, em uma operação em 6 de maio que deixou 28 mortos. Veículos blindados e um helicóptero acompanharam cerca de 200 policiais que procuravam por supostos traficantes de drogas na comunidade. No início daquela manhã, um policial foi assassinado. A violência que se seguiu foi uma aparente retaliação. A maioria das vítimas era negra, de acordo com boletins de ocorrência.

Os policiais não deveriam estar no Jacarezinho naquele dia. Uma decisão do STF no ano passado proibiu operações em favelas no Rio de Janeiro durante a pandemia, exceto em circunstâncias “absolutamente excepcionais”.

O objetivo alegado para a operação, prender 21 membros de baixo escalão de uma facção sob suspeita de tráfico de drogas, era dificilmente uma excepcionalidade. As forças policiais têm um longo histórico de justificar operações brutais como esforços para combater o tráfico de drogas e a criminalidade. A operação de 6 de maio foi a mais sangrenta da história do Rio.

Não precisa ser assim. O crime nas favelas do Rio cresceu ao longo de décadas de negligência do governo. As autoridades deixaram de fornecer serviços sociais básicos e não asseguraram uma presença policial permanente. Para entrar nas favelas, a polícia recorria a operações que frequentemente tornavam-se violentas. Os moradores não só se ressentiram com a brutalidade da polícia, mas também com o abandono do Estado.

Em 2008, o estado do Rio tentou expulsar as facções com a implementação das “Unidades de Polícia Pacificadora” ou UPPs. O programa colocou policiais nas comunidades sob o controle desses grupos criminosos, com o objetivo de restaurar a segurança pública e acabar com a cultura de violência e desconfiança entre a população e a polícia. O governo também investiu em infraestrutura, como postos de saúde e saneamento básico.

Alguns anos após o início do programa, as mortes por policiais caíram 86 por cento em comunidades com UPPs. A presença da polícia aumentou a frequência escolar e melhorou a qualidade de vida.

Mas as deficiências do programa enfraqueceram seus sucessos. Moradores ficaram frustrados quando o governo pareceu abandonar os esforços para melhorar suas vidas. Policiais reclamaram das difíceis condições de trabalho. Enquanto a confiança ruía, a criminalidade aumentava e o antigo sistema de policiamento por meio da força começou a retornar.

Em 2013, as tensões culminaram em protestos pelo desaparecimento de Amarildo de Souza, um pedreiro negro na favela da Rocinha. A notícia coincidiu com protestos em todo o país que pediam reformas para resolver diversas queixas, incluindo corrupção e violência policial. Em meio aos protestos e muita atenção da imprensa, a polícia civil e promotores públicos investigaram o caso do Amarildo. Sem essa pressão, assim como no caso dos cinco jovens, talvez nada teria sido feito.

A investigação descobriu que a polícia torturou o Amarildo durante um interrogatório sobre atividades de uma facção na comunidade. O corpo de Amarildo nunca foi encontrado. Três anos depois, Edson dos Santos, major da polícia, e outros 11 policiais foram condenados por torturar Amarildo até a morte. Edson dos Santos foi declarado culpado de orquestrar o crime, mas  nunca foi expulso da corporação e continuou recebendo seu salário na prisão. Ele foi reintegrado aos quadros de oficiais da polícia militar do Rio no início deste ano, após ser solto em liberdade condicional em 2019.

Não surpreende que os moradores hesitem em confiar em policiais, pois sabem que a maioria das mortes por policiais no Rio fica impune. De acordo com um inquérito da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) de 2016, 98 por cento das investigações em anos anteriores foram arquivadas sem denúncias.

A impunidade, a corrupção e os homicídios impossibilitaram as UPPs de desenvolver uma relação de confiança com os moradores. Ainda assim, a visão do programa – uma polícia que serve às comunidades – é o que o país inteiro deveria buscar, começando com investigações independentes por promotores sobre mortes decorrentes de ação policial. O Ministério Público deve garantir que as investigações sejam conduzidas de acordo com os padrões internacionais e apoiadas por peritos forenses independentes. O comando da polícia do Rio também deveria melhorar o treinamento sobre o uso da força e o apoio psicológico para os policiais.

Uma reforma profunda é impossível se a polícia continuar a tratar negros como suspeitos e os bairros pobres como território hostil. O ciclo de violência não terminará se os comandos continuarem a empregar torturadores como oficiais e as mortes por policiais ficarem impunes.

 Esse artigo foi publicado originalmente em inglês no New York Times

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