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Brasil: Rejeite Projeto de Lei do “marco temporal” para terras indígenas

Proposta é grande retrocesso no reconhecimento do direito ao território

Indígenas protestam contra o PL 490 em 8 de junho de 2021, em frente ao Congresso Nacional em Brasília, Brasil. © Mateus Bonomi/AGIF (via AP)

(São Paulo, 24 de agosto de 2021) – O Congresso Nacional deveria rejeitar um projeto de lei que, se aprovado, prejudicará ou impedirá que muitos povos indígenas reivindiquem a demarcação de seus territórios tradicionais, violando seus direitos de acordo com as normas internacionais, disse hoje a Human Rights Watch.

O projeto de lei 490/2007, em tramitação na Câmara dos Deputados, impediria os povos indígenas de obterem o reconhecimento legal de suas terras tradicionais se lá não estavam fisicamente em 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição Federal, ou se não tinham nesta data uma controvérsia possessória de fato ou judicializada. Essa tese é conhecida como “marco temporal”. A Constituição, entretanto, reconhece o direito dos povos indígenas às “terras que tradicionalmente ocupam”, sem quaisquer limites de tempo ou um marco temporal arbitrário.

“A aprovação desse projeto de lei seria um dos retrocessos mais significativos no reconhecimento dos direitos dos povos indígenas sobre suas terras tradicionais e seus recursos desde a redemocratização no Brasil”, disse Anna Lívia Arida, diretora adjunta da Human Rights Watch. “É um momento de extrema vulnerabilidade para as populações indígenas, que enfrentam não apenas a invasão de seus territórios por garimpeiros e madeireiros, mas também a hostilidade do governo Bolsonaro.”

Em 25 de agosto de 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) deve retomar o julgamento sobre a tese do marco temporal, que fixa uma data em 1988 como parâmetro para a demarcação, embora os ministros possam adiar a discussão. O STF julgará um recurso extraordinário no âmbito de uma ação movida pelo estado de Santa Catarina, que usa o argumento do marco temporal para se opor ao reconhecimento de áreas do território do povo indígena Xokleng. A Corte estabeleceu que a sua decisão neste caso terá repercussão geral e será aplicável a todos os semelhantes.

Enquanto o julgamento pendia no STF, o projeto de lei 490/2007 avançou no Congresso. Em junho, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou sua última versão. A proposta será analisada pelo plenário e, se aprovada, segue para o Senado.

O Brasil tem, sob análise, 237 pedidos de demarcação de terras indígenas. De acordo com a legislação brasileira, a demarcação estabelece claramente as áreas que pertencem aos povos indígenas, conferindo-lhes segurança jurídica sobre o direito coletivo em relação aos territórios. Muitos pedidos de demarcação estão pendentes há décadas. O projeto de lei afirma expressamente que seus dispositivos se aplicariam a todos os processos de demarcação não concluídos, o que poderia atrasá-los ainda mais ou mesmo impedir totalmente a demarcação.

Em 2017, o governo federal, então presidido por Michel Temer, adotou como política a tese do marco temporal, e o presidente Jair Bolsonaro deu continuidade a ela. De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o governo Bolsonaro, na prática, suspendeu a demarcação de 27 terras indígenas com base nessa política.

Se aprovado, o projeto transformaria essa política em lei. Isso tornaria impossível o reconhecimento dos direitos territoriais de povos indígenas que foram expulsos de seus territórios antes da data arbitrária do marco temporal ou que, de outro modo, não possam comprovar sua presença nesses territórios ou sua reivindicação nessa data.

Grupos socioambientais e de defesa dos direitos indígenas disseram à Human Rights Watch que grandes proprietários de terras poderiam usar o marco temporal para pleitear decisões judiciais que resultem na expulsão de comunidades de seus territórios, alegando que não provaram sua presença em 1988. Essas ações poderiam afetar terras em processo de demarcação ou mesmo as já demarcadas.

O projeto estava tramitando no Congresso desde 2007, mas ganhou nova força no governo do presidente Bolsonaro. Bolsonaro, que tem feito comentários ofensivos sobre indígenas desde quando era deputado, prometeu durante sua campanha presidencial que não demarcaria “um centímetro” de terras indígenas. Desde que assumiu o cargo, em janeiro de 2019, não homologou nenhuma demarcação.

Ao mesmo tempo, o presidente Bolsonaro enfraqueceu as agências federais encarregadas de proteger as florestas em terras indígenas. Uma de suas prioridades legislativas é abrir essas terras para mineração e outras atividades que podem agravar a destruição da floresta, intensificada sob seu governo.

Escolher uma data arbitrária e recusar-se a reconhecer territórios reivindicados posteriormente viola os padrões internacionais, disse a Human Rights Watch. A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas afirma que eles têm direito às terras, territórios e recursos que possuem e ocupam tradicionalmente ou que tenham de outra forma utilizado. Os Estados são obrigados a dar reconhecimento legal e proteção às terras tradicionais, incluindo aquelas que os povos indígenas foram forçados a deixar ou perderam de outra forma.

Em 2007, o Brasil votou a favor desta declaração na ONU e a descreveu como “uma grande conquista, há muito esperada, que dará um novo impulso e reconhecimento aos esforços dos Estados e dos povos indígenas para fortalecer a promoção e proteção dos direitos dos povos indígenas”.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos também reconheceu o direito à restituição de terras historicamente possuídas ou ocupadas por povos indígenas, e concluiu que a posse não é uma exigência, pois o direito permanece enquanto persistir o vínculo material, cultural ou espiritual com a terra.

O projeto de lei 490/2007 contém outros dispositivos bastante problemáticos. Impede os povos indígenas de reivindicarem a ampliação de terras indígenas já demarcadas. Também permitiria ao governo retomar as chamadas áreas indígenas reservadas – destinadas pela União a comunidades indígenas para garantir sua subsistência e preservação de sua cultura – quando julgar que a área não é mais “essencial” para esses fins devido a alteração dos “traços culturais” ou outros fatores relacionados ao “decurso do tempo”. Esses termos excessivamente vagos poderiam levar a remoções forçadas, disse a Human Rights Watch.

Existem 60 áreas indígenas reservadas no Brasil, onde habitam quase 70 mil pessoas, segundo o Instituto Socioambiental (ISA).

O projeto também permitiria ao governo o contato com indígenas isolados para “prestar auxílio médico” e “intermediar ação estatal de utilidade pública”, sem fornecer quaisquer outros detalhes. As diretrizes de proteção para povos indígenas em isolamento e em contato inicial, resultado de consultas do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos na região da América do Sul, alertam que o contato com povos isolados pode ter consequências negativas dramáticas para sua sobrevivência física e cultural e que os governos devem tomar medidas para evitar o contato externo.

O projeto também permitiria ao governo explorar recursos energéticos, estabelecer bases militares e expandir a malha viária em terras indígenas sem qualquer consulta às comunidades. As normas internacionais exigem uma consulta eficaz de boa-fé com os povos indígenas para obter seu consentimento livre e informado antes de aprovar projetos que impactariam suas terras e meios de subsistência, inclusive para atividades militares, bem como antes de aprovar medidas legislativas com esse efeito. O Congresso também analisa a possível retirada do Brasil da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que reconhece o direito dos povos indígenas de serem consultados sobre projetos em suas terras, entre outras disposições.

A demarcação e proteção dos territórios não é apenas um passo fundamental para defender os direitos dos povos indígenas, mas também um marco nos esforços bem-sucedidos de conservação no Brasil. Estudos mostram que a demarcação e outras medidas de proteção às terras indígenas podem desacelerar o desmatamento, o que é fundamental para que o Brasil cumpra seus compromissos de redução das emissões de gases de efeito estufa sob o Acordo de Paris. No governo Bolsonaro, o desmatamento na Amazônia atingiu sua maior taxa em 12 anos – cerca de 11.000 quilômetros quadrados de floresta foram destruídos entre agosto de 2019 e julho de 2020.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) afirmou que o projeto é uma das principais ameaças aos direitos dos povos indígenas no Poder Legislativo, e que viola a Constituição e o direito de consulta aos povos indígenas.

“O Congresso Nacional está discutindo questões de extrema importância para os povos indígenas sem a devida consulta, conforme exigem as normas internacionais”, disse Anna Lívia. “Os congressistas deveriam começar a escutar os povos indígenas e rejeitar o Projeto de Lei 490.”

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