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Com os autocratas na defensiva, os democratas estarão à altura da ocasião?

Manifestantes em Mianmar se reúnem com escudos caseiros e equipamentos de proteção para se defender das forças de segurança durante repressões violentas após o golpe militar em 1º de fevereiro de 2021.

© 2021 Private

Atualmente, o senso comum é que o autoritarismo está em ascensão e a democracia em declínio. Essa visão ganha respaldo com a intensificação da repressão às vozes da oposição na China, Rússia, Bielorrússia, Mianmar, Turquia, Tailândia, Egito, Uganda, Sri Lanka, Bangladesh, Venezuela e Nicarágua. Encontra suporte também nos golpes militares em Mianmar, Sudão, Mali e Guiné, e nas transições de poder não democráticas na Tunísia e no Chade. E ganha sustentação com o surgimento de líderes com tendências autocráticas em democracias outrora ou ainda estabelecidas, como Hungria, Polônia, Brasil, El Salvador, Índia, Filipinas e, até um ano atrás, nos Estados Unidos.

Mas o apelo superficial da tese de uma ascensão autoritária esconde uma realidade mais complexa – e um futuro mais sombrio para os autocratas. 

Como as pessoas veem que governantes autoritários inevitavelmente priorizam seus próprios interesses em detrimento do interesse público, a demanda popular por democracias que respeitem os direitos frequentemente permanece forte. Em diversos países, multidões saíram às ruas recentemente, mesmo correndo o risco de serem presas ou baleadas. São poucas as manifestações em defesa de governos autocráticos.

Uma manifestante libertada da prisão após três semanas de detenção se reúne com sua mãe em Yangon, Mianmar, em 24 de março de 2021. A saudação de três dedos, adaptada de “Jogos Vorazes”, é um sinal amplamente usado de desobediência civil. © 2021 The New York Times/Redux

Em alguns países governados por autocratas que pelo menos mantêm a aparência de eleições democráticas, os partidos políticos da oposição começaram a superar suas diferenças políticas para construir alianças mais amplas em busca de um interesse comum de tirar o autocrata do poder. E à medida que os autocratas não conseguem mais depender de eleições sutilmente manipuladas para preservar o poder, um número crescente está recorrendo a farsas eleitorais explícitas que garantem o resultado desejado, mas não conferem a legitimidade desejada com a realização de eleições.

No entanto, os autocratas estão aproveitando seu momento ao sol em parte por causa das falhas de líderes democráticos. A democracia pode ser a forma de governança menos ruim, como observou Winston Churchill, já que os eleitores podem votar pela mudança do governo, mas os líderes democráticos de hoje não estão correspondendo aos desafios que têm pela frente. Seja a crise climática, a pandemia de Covid-19, a pobreza e a desigualdade, a injustiça racial ou as ameaças da tecnologia moderna, esses líderes costumam estar ocupados em batalhas partidárias e preocupações de curto prazo para resolver esses problemas de maneira eficaz. Alguns políticos populistas tentam desviar a atenção com apelos racistas, sexistas, xenófobos ou homofóbicos, deixando soluções reais na imaginação.

Para que as democracias prevaleçam na competição global com a autocracia, seus líderes devem fazer mais do que destacar as falhas inevitáveis dos autocratas. Eles precisam apresentar uma defesa mais forte e positiva do governo democrático. Isso significa trabalhar melhor para responder aos desafios nacionais e globais – garantindo que a democracia entregue os resultados prometidos. Significa defender instituições democráticas, como tribunais independentes, imprensa livre, legislaturas robustas e sociedades civis vibrantes, mesmo quando isso acarrete um escrutínio indesejável ou desafios ao poder executivo. E exige elevar o discurso público em vez de alimentar nossos piores sentimentos, agindo com base em princípios democráticos em vez de apenas expressá-los, buscando a união diante de ameaças iminentes, e não a divisão da sociedade na busca por outro mandato improdutivo.

A maior parte do mundo hoje espera que os líderes democráticos resolvam nossos maiores problemas. Os líderes chineses e russos nem se deram ao trabalho de aparecer na cúpula do clima em Glasgow. Mas se as autoridades democráticas continuarem a nos decepcionar, se forem incapazes de demonstrar a liderança visionária que esta época exigente requer, elas correm o risco de alimentar a frustração e o desespero que são um terreno fértil para os autocratas.

Os perigos de autocratas no poder

O primeiro objetivo da maioria dos autocratas é enfraquecer os freios e contrapesos sobre sua autoridade. Uma democracia digna de seu nome requer não apenas eleições periódicas, mas também o debate público livre, uma sociedade civil independente, partidos políticos competitivos e um judiciário independente capaz de defender os direitos individuais e manter as autoridades sob o Estado de Direito. Como se todos os autocratas lessem o mesmo manual, eles inevitavelmente atacam tais limitações ao seu poder – jornalistas independentes, ativistas, juízes, políticos e defensores dos direitos humanos. A importância desses freios e contrapesos foi visível nos Estados Unidos, onde impediram a tentativa do presidente Donald Trump de roubar as eleições de 2020, e no Brasil, onde já estão trabalhando para impedir as ameaças do presidente Jair Bolsonaro de fazer o mesmo na eleição prevista para 2022.

A ausência de um processo democrático permite aos autocratas agirem sem prestar contas à população. Isso os torna mais propensos a servir aos seus próprios interesses políticos – e aos de seus apoiadores civis e militares. Os autocratas afirmam entregar melhores resultados do que os democratas, mas geralmente os entregam para si próprios.

A pandemia de Covid-19 destacou essa tendência egoísta. Muitos líderes autocráticos minimizaram a pandemia, viraram as costas às evidências científicas, espalharam informações falsas e falharam em tomar medidas básicas para proteger a saúde e a vida da população. Seus motivos variaram de mesquinharias populistas a tentativa de fugir das críticas por não terem feito o suficiente para impedir a disseminação do vírus ou da necessidade de fortalecer os sistemas de proteção social. Conforme as contaminações e mortes aumentaram, alguns desses líderes ameaçaram, silenciaram ou até prenderam os profissionais de saúde, jornalistas e outros que relataram, protestaram ou criticaram suas fracassadas respostas – gerando uma ausência de debate público que tendia a gerar desconfiança e piorar a situação.

Variações desse cenário ocorreram no Egito, Índia, Hungria, Grécia, Tajiquistão, Brasil, México, Nicarágua, Venezuela, Tanzânia sob o falecido presidente John Magufuli e nos Estados Unidos sob Trump. Alguns autocratas usaram a pandemia como pretexto para interromper as manifestações contra seu governo, embora às vezes permitissem manifestações a seu favor, como em Uganda, Rússia, Tailândia, Camboja e Cuba.

Mesmo na China, onde as restrições de circulação do governo limitaram a disseminação da Covid-19, o acobertamento oficial da transmissão entre pessoas em Wuhan durante as três primeiras semanas críticas de janeiro de 2020, enquanto milhões fugiam ou passavam pela cidade, contribuiu para a disseminação global. Até hoje, Pequim se recusa a cooperar com uma investigação independente sobre as origens do Coronavírus.

Os autocratas também costumam investir recursos do governo em projetos de interesse próprio, e não para atender necessidades públicas. Na Hungria, por exemplo, o primeiro-ministro Viktor Orban gastou os subsídios da União Europeia em estádios de futebol, que ele usou para pagar amigos, enquanto deixava hospitais em estado decrépito. No Egito, o presidente Abdel Fattah al-Sisi permitiu que as instalações de saúde definhassem enquanto o exército e suas vastas empresas floresciam, e ele buscou projetos grandiosos como a construção de uma nova capital administrativa ao leste do Cairo. Enquanto a economia russa declinava, o Kremlin aumentou os gastos com os militares e a polícia.

A capacidade de ação mais ágil dos autocratas, decorrente da ausência dos freios e contrapesos da democracia, pode, paradoxalmente, ser sua ruína. O livre debate sobre regras democráticas pode retardar a tomada de decisões, mas também garante que pontos de vista diversos sejam ouvidos. Os autocratas tendem a reprimir opiniões divergentes, levando a decisões mal pensadas, como a atitude do presidente turco Recep Tayyip Erdoğan de reduzir as taxas de juros em face da inflação descontrolada. O ex-presidente do Sri Lanka, Mahinda Rajapaksa, construiu um porto com empréstimos chineses e apressou a construção, causando perdas econômicas tão grandes que Pequim ganhou o controle do porto por 99 anos. O crescimento econômico da Índia ainda não se recuperou totalmente da decisão abrupta do governo do primeiro-ministro Narendra Modi de eliminar as cédulas de alto valor – um esforço para conter a corrupção que prejudica as pessoas em maior vulnerabilidade que dependem principalmente de dinheiro vivo para sua subsistência.

Conforme o presidente chinês Xi Jinping consolida seu poder, ele precisa enfrentar os desafios de uma economia em desaceleração, uma crise da dívida, uma bolha imobiliária, uma força de trabalho cada vez menor à medida que a população envelhece e a preocupante desigualdade social – sem o livre debate sobre soluções por parte dos cidadãos do país. No passado, o governo de um só homem já levou à desastrosa Revolução Cultural do Partido Comunista Chinês e ao Grande Salto Adiante, que causaram a morte de milhões de pessoas. No entanto, em vez de encorajar a discussão pública sobre como lidar com os problemas atuais, Xi está supervisionando crimes contra a humanidade em Xinjiang, curvando o sistema legal à sua vontade, expurgando aliados políticos e estendendo o estado de vigilância a todos os cantos do país. A tomada de decisão sem qualquer escrutínio é uma receita para erros desastrosos.

A aceitação popular à democracia

Mesmo quando a vigilância intrusiva e a repressão severa acabam por restringir as manifestações, o grande número de pessoas que se juntaram a elas demostrou o desejo da população pela democracia. A repressão pode gerar resignação, mas isso não deve ser confundido com apoio. Poucas pessoas desejam a opressão, a corrupção e a má administração do governo autocrático.

Muitos autocratas pensaram que haviam aprendido a controlar os eleitores por meio de eleições manipuladas. Permitiriam a votação periódica, mas apenas após distorcerem as regras do jogo o suficiente para prevalecerem. Eles censurariam a mídia, restringiriam as organizações da sociedade civil, desqualificariam os oponentes e confeririam benefícios estatais seletivamente. Alguns demonizariam grupos desfavorecidos – imigrantes e requerentes de refúgio, lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT+), minorias raciais ou religiosas, mulheres que exigem seus direitos – para desviar a atenção de sua incapacidade ou falta de vontade de apresentar resultados reais. Essa manipulação costumava ser suficiente para declarar “vitória”, mas não tão flagrante a ponto de privar o processo de toda sua legitimidade.

À medida que a corrupção e a má gestão dos governos autocráticos se tornam inegáveis, alguns eleitores se tornam menos suscetíveis às técnicas de manipulação eleitoral dos autocratas. Em certos países onde algum grau de pluralismo político ainda era tolerado, amplas coalizões de partidos políticos começaram a se formar, abrangendo todo o espectro político. Essas alianças refletem a consciência crescente de que as diferenças partidárias minguam em comparação ao interesse comum de remover um governante corrupto ou autocrático.

Na República Tcheca, essa coalizão derrotou nas urnas o primeiro-ministro Andrej Babiš. Em Israel, uma ampla coalizão acabou com o antigo governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. Alianças semelhantes de partidos de oposição foram formadas antes das próximas eleições contra Orban na Hungria e Erdoğan na Turquia. Tendência semelhante dentro do Partido Democrata dos Estados Unidos contribuiu para a escolha de Joe Biden para disputar a eleição de 2020 contra Trump.

Farsas eleitorais

Nessas circunstâncias, eleições manipuladas tornaram-se menos eficazes, forçando os autocratas a recorrer a formas cada vez mais severas de controle eleitoral. Para as eleições parlamentares russas, as autoridades desqualificaram na prática todos os candidatos viáveis ​​da oposição, proibiram protestos e silenciaram jornalistas e ativistas críticos. As autoridades russas prenderam a principal figura da oposição, Alexei Navalny (depois de quase matá-lo envenenando-o com um agente nervoso), classificaram suas organizações como “extremistas” e impediram os esforços de sua equipe para organizar uma estratégia de “votação inteligente” buscando selecionar o oponente remanescente menos questionável pelo partido no poder.

Em Hong Kong, onde eleições primárias informais entre os candidatos pró-democracia ameaçavam os candidatos pró-Pequim de uma derrota vergonhosa, o governo chinês destruiu o acordo de um país e dois sistemas, impôs uma lei draconiana de “segurança nacional” que efetivamente acabou com as liberdades políticas do território e permitiu que apenas “patriotas” (ou seja, candidatos pró-Pequim) concorressem a cargos públicos. O governo de Bangladesh da primeira-ministra Sheikh Hasina prendeu, promoveu desaparecimentos forçados e executou membros da oposição política, além de mobilizar forças de segurança para intimidar eleitores e candidatos.

Na Nicarágua, o presidente Daniel Ortega prendeu todos os principais oponentes e dezenas de críticos do governo, e revogou o status legal dos principais partidos da oposição. O presidente bielorrusso, Alexander Lukashenko, fez o mesmo com seus principais oponentes, mas não contou com o enorme apelo eleitoral de Sviatlana Tsikhanouskaya, que substituiu o marido como candidata e pode ter vencido a eleição roubada antes de ser obrigada a fugir do país.

Em Uganda, o presidente Yoweri Museveni, enfrentando um oponente jovem, carismático e popular, proibiu seus comícios e as forças de segurança atiraram em seus apoiadores. Os clérigos governantes do Irã desqualificaram todos, exceto os linha-dura, de competir nas eleições presidenciais. A liderança do Uzbequistão recusou-se a registrar qualquer partido de oposição, garantindo que não haveria um desafio genuíno à continuação do governo do presidente Shavkat Mirziyoyev. Os governos do Camboja e da Tailândia dissolveram partidos populares de oposição e forçaram os políticos da oposição ao exílio ou os prenderam.

O que resta após tamanho ataque ao processo eleitoral já não é mais uma democracia manipulada, mas uma “democracia zumbi” – uma democracia morta-viva, uma farsa sem qualquer pretensão de ser uma competição livre e justa. Estes autocratas deixaram de atuar através da cooptação manipulada para governar através da repressão e do medo. Alguns citam essa opressão descarada como uma evidência da ascensão do poder autocrático, mas na verdade ela representa muitas vezes o oposto, um ato de desespero por líderes ditatoriais que sabem que perderam qualquer perspectiva de apoio popular. Eles aparentemente esperam que manter a farsa será menos provocativo do que uma rejeição explícita da democracia, mas o custo é a perda de qualquer legitimidade esperada para garantir as aparências de um exercício eleitoral.

A busca de aprovação internacional por Pequim

O governo chinês apresenta uma variação deste tema. No continente, nunca tolerou eleições. A constituição impõe a ditadura do Partido Comunista Chinês e, nos últimos anos, o governo tem reafirmado cada vez mais a suposta superioridade de seu sistema sobre a desordem da democracia. Ainda assim, o governo não mede esforços para evitar testar essa proposta.

Em instâncias internacionais, como o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, as autoridades chinesas aclamaram como medida suficiente de direitos humanos o crescimento de seu produto interno bruto. Previsivelmente, eles lutam contra qualquer esforço para avaliar seu histórico de direitos civis e políticos, como a detenção de um milhão de uigures e outros muçulmanos turcomanos em Xinjiang a fim de forçá-los a abandonar sua religião, cultura e idioma. Mas eles também rejeitam qualquer crítica a suas políticas econômicas e sociais que aponte direitos desiguais ou discriminação.

Para evitar tal escrutínio, Pequim usa uma série de incentivos e punições em suas relações exteriores. Os incentivos incluem o “Belt and Road Initiative” (em português chamada da “Nova Rota da Seda”) de um trilhão de dólares, um programa de desenvolvimento de infraestrutura que promove um “destino comum” liderado por Pequim, mas tão pouco transparente que ajuda líderes corruptos que desviam fundos enquanto deixam seu povo preso a insustentáveis dívidas. As punições ficaram evidentes na retaliação econômica que Pequim impôs à Austrália por ter a audácia de buscar uma investigação independente sobre as origens da Covid-19, ou a ameaça de Pequim de reter vacinas para Covid para a Ucrânia, a menos que seu governo se retirasse de uma declaração governamental conjunta no Conselho de Direitos Humanos da ONU que critica a perseguição em Xinjiang. Seja excluindo a possibilidade de países ou empresas acessarem o mercado chinês ou ameaçando membros da diáspora chinesa ou suas famílias, Pequim agora estende rotineiramente seus esforços de censura aos críticos no exterior.

Pequim não quer se sujeitar ao escrutínio irrestrito de pessoas em toda a China, razão pela qual censura (e muitas vezes detém) os críticos internos. Quando o único território sob seu controle que era livre para se expressar – Hong Kong – demonstrou por meio de protestos em massa sua oposição ao governo do Partido Comunista, Pequim esmagou essas liberdades. O medo semelhante de um veredicto doméstico sobre seu governo pode ser visto em outros governos ditatoriais e monárquicos que nunca arriscaram nem mesmo eleições “controladas”, como Cuba, Vietnã, Coreia do Norte, Turcomenistão, Essuatíni, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos.

O poder a qualquer preço

Chegando aos limites da lógica autocrática, alguns autocratas estão tão determinados a se agarrar ao poder que estão dispostos a arriscar uma catástrofe humanitária. O presidente da Síria, Bashar al-Assad, é um exemple perfeito desse cálculo cruel, indo tão longe a ponto de bombardear (com a ajuda russa) hospitais, escolas, mercados e edifícios em áreas mantidas pela oposição armada, deixando partes do país devastadas e despovoadas. Nicolas Maduro, da Venezuela, também dirigiu a ruína de seu país – hiperinflação, uma economia destruída e milhões de pessoas em fuga.

A junta de Mianmar e o Talibã no Afeganistão parecem demostrar um desprezo semelhante pelo bem-estar social, assim como o governo da Etiópia ao ir atrás de um conflito que começou na região de Tigré, e os militares sudaneses, embora eles tenham recentemente manifestado a intenção de voltar a compartilhar o governo com aqueles que buscam a democracia. O esperado resgate pelos opositores da democracia – China, Rússia, Arábia Saudita ou Emirados Árabes Unidos – raramente é suficiente para remediar a destruição do “eu antes do povo” dos autocratas.

Em suma, a suposta ascensão dos autocratas é mais limitada do que muitas vezes se supõe. Quer enfrentem pessoas nas ruas em busca de democracia, amplas coalizões políticas que resistem a seus ataques à democracia ou a dificuldade de controlar as eleições quando as pessoas enxergam através de seus governos egocêntricos, os autocratas costumam ficar assustados. Deixando de lado o alvoroço sobre a ascensão dos autocratas, a posição deles não é invejável.

Democracias deixando a desejar

Ainda assim, as democracias de hoje dificilmente têm um histórico admirável no tratamento de problemas sociais. É amplamente sabido que, em última análise, as democracias ascendem ou caem pelo poder de seu exemplo, mas muitas vezes esse exemplo tem sido decepcionante. Os líderes democráticos de hoje não têm se mostrado à altura dos desafios que o mundo enfrenta.

Sim, as democracias são complicadas por natureza. A divisão do poder inevitavelmente retarda seu exercício, mas esse é o preço de evitar a tirania - uma preocupação que permeia especialmente o sistema de governo dos Estados Unidos. No entanto, as democracias hoje em dia estão falhando de maneiras que transcendem as limitações inerentes dos freios e contrapesos democráticos. Esse desempenho decepcionante ocorre mesmo que o pluralismo das democracias – sua imprensa livre, sociedades civis vibrantes e legislaturas e tribunais independentes – muitas vezes exerçam pressão sobre os governos para resolver sérios problemas.

A crise climática representa uma terrível ameaça, mas os líderes democráticos estão apenas tangenciando o problema, aparentemente incapazes de superar as perspectivas nacionais e os interesses pessoais para dar importantes passos necessários. As democracias responderam à pandemia desenvolvendo vacinas de mRNA altamente eficazes com notável velocidade, mas não conseguiram garantir que as pessoas de países de baixa renda compartilhassem desta invenção que salva vidas, resultando em inúmeras mortes desnecessárias e aumentando a probabilidade de variantes das quais as vacinas não possuam eficácia.

Alguns governos democráticos adotaram ações para mitigar as consequências econômicas das medidas de isolamento social usadas ​​para proteger a saúde das pessoas e conter a disseminação da Covid-19, mas ainda devem enfrentar o problema mais amplo e persistente da pobreza generalizada e da desigualdade, ou construir sistemas adequados de proteção social para a próxima ruptura econômica inevitável. As democracias regularmente debatem as ameaças apresentadas pelas indústrias de tecnologia – a disseminação de ódio e desinformação em redes sociais, a invasão em grande escala de nossa privacidade como modelo econômico, a intrusão de novas ferramentas de vigilância, os vieses da inteligência artificial – mas têm avançado muito pouco no sentido de enfrentá-las.

Sim, esses problemas são grandes, mas como mostra o debate sobre o clima, quanto maior o problema, mais claro fica que cada governo tem o dever de contribuir para a solução. Esse reconhecimento oferece uma oportunidade para maior responsabilização, mas muitos líderes democráticos ainda esperam sobreviver politicamente apresentando compromissos pouco significativos perante os quais não serão responsabilizados. Sua cautela dificilmente é uma receita para eficácia.

Essas democracias não se saem melhor quando atuam fora de suas fronteiras. Quando deveriam estar apoiando consistentemente os democratas em vez dos autocratas, eles frequentemente se rebaixam aos compromissos da realpolitik, em que apoiar “amigos” autocráticos – para reduzir a migração, combater o terrorismo ou proteger a suposta “estabilidade” – precede a defesa baseada em princípios da democracia. Sisi, do Egito, e Museveni, de Uganda, foram beneficiários proeminentes dessa lógica equivocada.

Lógica semelhante – neste caso, contra o governo chinês – está por trás do silêncio geral entre os líderes democráticos que saudaram o governo cada vez mais autocrático de Modi na Índia. Os Estados Unidos, a União Europeia, o Reino Unido, o Canadá e a Austrália buscaram fortalecer os laços com a Índia em segurança, tecnologia e comércio com apenas vagas menções de “valores democráticos compartilhados” e nenhuma disposição em exigir que o governo de Modi prestasse contas pela repressão da sociedade civil e o fracasso em proteger as minorias religiosas de ataques.

Sinais ambíguos de Biden

Em contraste ao acolhimento de autocratas amigáveis ​​por Trump quando era presidente dos Estados Unidos, Biden assumiu o cargo prometendo uma política externa que seria guiada pelos direitos humanos. Contudo ele continua a vender armas ao Egito, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Israel, apesar da repressão persistente nesses países. Diante de uma tendência autocrática na América Central, Biden abordou principalmente a questão na tradicional rival Nicarágua, enquanto em outros lugares priorizava esforços para reduzir a migração em vez da autocracia. A preocupação com a migração também levou Biden a não melindrar o presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador, apesar de seus ataques à mídia e ao judiciário e seu negacionismo em relação à Covid.

Durante as principais cúpulas, Biden parecia perder a voz quando se tratava de denúncias públicas de graves violações de direitos humanos. O Departamento de Estado dos EUA emitiu protestos ocasionais sobre a repressão em certos países e, em casos extremos, o governo Biden introduziu sanções direcionadas a alguns funcionários envolvidos, mas a voz influente do presidente muitas vezes estava ausente. Depois de se reunir com Xi da China, Vladimir Putin da Rússia e Erdoğan da Turquia, Biden observou que eles haviam discutido “direitos humanos”, mas ofereceu poucos detalhes sobre o que foi dito ou quais consequências poderiam advir se a repressão continuasse. Restou a incerteza para as pessoas desses países – os principais agentes de mudança, que poderiam ter usado um incentivo nestes tempos difíceis – sobre o apoio que receberiam.

A adesão de Biden às instituições internacionais também foi seletiva, mesmo que tenha sido uma melhoria considerável em relação aos ataques de Trump. Sob Biden, o governo dos Estados Unidos concorreu com sucesso a uma vaga no Conselho de Direitos Humanos da ONU que Trump havia abandonado, voltou à Organização Mundial da Saúde depois que Trump decidiu deixá-la e voltou a se comprometer com a luta global contra a mudança climática depois que Trump a menosprezou.

Além disso, Biden suspendeu as sanções de Trump contra a procuradora do Tribunal Penal Internacional. Mas manteve a oposição do governo dos EUA ao procurador que investiga os EUA por tortura no Afeganistão ou Israel por crimes de guerra e crimes contra a humanidade no Território Palestino Ocupado, embora tanto o Afeganistão quanto a Palestina tenham conferido jurisdição ao tribunal para crimes cometidos em seu solo, e nem os EUA ou o governo israelense tenham intencionalmente processado esses crimes.

Seletividade europeia

Outros líderes ocidentais demonstraram fraqueza semelhante em sua defesa da democracia. O governo da ex-chanceler alemã Angela Merkel ajudou a orquestrar a condenação global dos crimes contra a humanidade do governo chinês em Xinjiang. Mas, enquanto ocupava a presidência da União Europeia, a Alemanha ajudou a promover um acordo de investimento da UE com a China, apesar do uso de trabalho forçado uigur por Pequim. Em vez de condicionar o acordo ao fim do trabalho forçado, ou mesmo à adoção do tratado da Organização Internacional do Trabalho que o proíbe, Merkel aceitou a promessa de Pequim de considerar um dia ingressar no tratado. Foi necessário que o Parlamento Europeu rejeitasse esse abandono de princípio.

O governo do presidente francês Emmanuel Macron também ajudou a coordenar a condenação generalizada da conduta de Pequim em Xinjiang, mas estava cego para a situação abismal dos direitos no Egito. Os egípcios sob Sisi estão passando pela pior repressão da história moderna do país, mas o governo francês continua a vender armas e Macron até deu a Sisi a mais importante condecoração da França, a La Légion d'honneur  (A Legião de Honra, em português). Da mesma forma, Macron anunciou uma enorme venda de armas aos Emirados Árabes Unidos, apesar do envolvimento de seus militares em inúmeros ataques ilegais contra civis no Iêmen, e ele se tornou o primeiro líder ocidental a se encontrar com o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, desde o assassinato do jornalista independente Jamal Khashoggi em 2018. Além disso, o governo francês fracassou em endereçar as operações da gigante francesa de energia, Total, em Mianmar, apesar da receita de suas operações financiar os crimes contra a humanidade da junta. 

A União Europeia ainda não agiu com seu novo poder de condicionar os subsídios em grande escala à Hungria e à Polônia ao respeito de seus líderes autocráticos pela democracia, pelos direitos humanos e pelo Estado de Direito. Nem mesmo deu um passo para considerar esses governos em “grave violação” dos valores do tratado da UE depois que o procedimento de escrutínio para ambos os países foi iniciado sob o Artigo 7 da UE por causa de seus ataques ao regime democrático. Enquanto o governo polonês fechava sua fronteira para os requerentes de refúgio que passavam pela Bielorrússia, aumentaram os temores de que suas ações se tornassem a mais recente desculpa da UE para ignorar as medidas do governo para enfraquecer um judiciário independente e atacar os direitos das mulheres e das pessoas LGBT. Sem uma correção de curso, a UE corre o risco de deixar de ser um clube de democracias e ser reduzida a um mero bloco comercial.

De forma mais ampla, a exigência de unanimidade em questões de política externa da União Europeia foi cada vez mais abusada por alguns de seus Estados membros para silenciar e retardar uma resposta coletiva firme, rápida e baseada em princípios aos ataques à democracia e aos direitos humanos. No entanto, em um movimento positivo, a maioria dos membros da UE decidiu agir em conjunto enquanto Estados com “ideias semelhantes”. Josep Borrell, o alto representante da UE para as relações exteriores, também mostrou disposição de representar as posições estabelecidas da UE por conta própria, sem a aprovação de todos os membros da UE.

Inconsistência global

Fora do Ocidente, governos tomaram pelo menos alguma ação em nome da democracia contragolpes militares declarados – a Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) no caso de Mianmar, a União Africana em relação ao Sudão, Guiné e Mali.

Mas não mostraram interesse semelhante em abordar os endêmicos abusos dos direitos por líderes autocráticos de longa data, como os governantes no Vietnã, Camboja e Tailândia na Ásia, ou Ruanda, Uganda e Egito na África. A Organização dos Estados Americanos tem se manifestado contra as ditaduras de Maduro na Venezuela e Ortega na Nicarágua, mas ainda se silencia diante das tendências autocráticas de Bolsonaro no Brasil e do presidente Nayib Bukele em El Salvador. Sri Lanka enfrentou pouca pressão para respeitar os direitos quando os irmãos Rajapaksa retornaram ao poder, apesar de seus históricos de perpetrarem crimes de guerra.

No Oriente Médio, governos autoritários, especialmente a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, forneceram apoios, inclusive financeiro, para sustentar o regime repressivo de Sisi no Egito, aplaudiram a tomada de poder do presidente Kais Saied na Tunísia e continuaram a apoiar a tolerância zero para dissidentes no Bahrein. O Irã continuou a apoiar Assad na Síria, apesar dos crimes contra a humanidade que ele supervisionou ao reprimir a rebelião contra o seu governo. Os Emirados Árabes Unidos, Turquia, Rússia e Egito são todos atores do armamento abusivo na Líbia.

Enquanto isso, o governo russo promoveu políticos de extrema direita nas democracias ocidentais com a esperança de desacreditar essas democracias e, portanto, aliviar a pressão sobre o Kremlin de respeitar o desejo dos russos por mais democracia.

Decepção da ONU

O secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, mostrou um pouco mais de disposição no ano passado para criticar governos específicos por suas violações de direitos humanos, em vez de recorrer a declarações generalistas sobre o respeito aos direitos que nenhum governo em particular sentia pressão para obedecer. Mesmo assim, Guterres mencionou principalmente governos fracos que já eram párias, como a junta de Mianmar após o golpe militar. Mesmo depois de garantir um segundo mandato e não precisar mais se preocupar com o veto da China às suas aspirações, Guterres se recusou a condenar publicamente os crimes do governo chinês contra a humanidade em Xinjiang.

A alta comissária da ONU para direitos humanos, Michelle Bachelet, permitiu que sua incapacidade de obter acesso irrestrito a Xinjiang – acesso que Pequim não concedeu depois de anos de negociação e provavelmente nunca concederá – se tornasse uma desculpa para adiar a publicação de um relatório sobre Xinjiang por mais de três anos, recorrendo ao monitoramento remoto do qual a Human Rights Watch e muitos outros dependem. No início de dezembro, seu porta-voz disse esperar que a avaliação seja divulgada nas próximas semanas. A pressão então aumentará sobre os membros do Conselho de Direitos Humanos da ONU para tratar dos crimes contra a humanidade do governo chinês. 

A necessidade de estar à altura da ocasião

O resultado da batalha entre autocracia e democracia permanece incerto. Devido à tendência de governos não responsabilizáveis causarem danos a sua população, os autocratas estão na defensiva à medida que protestos populares aumentam, amplas coalizões políticas pró-democracia emergem e a realização de eleições manipuladas, em oposição a farsas eleitorais, não são mais suficientes.

No entanto, apesar do amplo apelo por democracia, seu destino depende em grande parte das ações de líderes democráticos. Eles abordarão os principais desafios que temos pela frente, elevarão em vez de rebaixar o debate público e agirão de forma consistente, tanto em casa quanto no exterior, com os princípios democráticos e de direitos humanos que afirmam defender? Ser o sistema político menos ruim pode não ser suficiente se o desespero das pessoas com o fracasso dos líderes democráticos em enfrentar os desafios de hoje levarem à indiferença pública em relação à democracia. A defesa dos direitos humanos requer não apenas a redução da repressão autocrática, mas também o aprimoramento da liderança democrática.