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Conheci Taise Campos, uma professora de 38 anos, em uma viagem que fiz com um colega da Human Rights Watch à Roraima, em fevereiro, para tentar entender a alarmante taxa de homicídios de mulheres no estado.

A vida de Taise mudou radicalmente há 11 anos, quando o seu marido começou a beber e se tornou agressivo. Ele abusou verbalmente dela, chamando-a de “puta”, “vadia” e “demônio”. Depois a violência só aumentou. Ele quebrou imagens de cunho religioso e outros objetos que ela prezava. Passou a bater nela na frente dos dois filhos do casal, “sempre chutando em lugares que não eram visíveis às outras pessoas”, Taise nos contou. Ele a ameaçou, dizendo: “Você não é blindada, a qualquer hora você pode levar um tiro. Pode-se passar 10, 15, 20 anos, mas um dia eu vou te matar”.

Todas as atitudes do marido são formas de violência doméstica – o abuso físico, o abuso psicológico e as ameaças. E elas costumam se repetir, no que é conhecido como o “ciclo da violência” – um ciclo alternando períodos de abusos e de calma que torna difícil às mulheres reconhecerem a violência pela qual estão passando e reagirem a ela. No caso de Taise, o abuso começou de forma esporádica, e era seguido por manifestações de arrependimento do agressor, que pedia perdão e prometia que nunca mais faria aquilo. “A violência começou bem esporádica, depois passou a acontecer todo mês, e então, toda semana e, depois, todos os dias e, no fim, podia acontecer a qualquer momento”, ela disse.

Durante anos, Taise não registrou qualquer boletim de ocorrência na polícia.

O estado de Roraima é o mais letal do Brasil para mulheres e meninas. A taxa de homicídios de mulheres no estado cresceu 139 por cento entre 2010 e 2015, atingindo 11,4 mortes para cada 100.000 mulheres nesse ano, o último para o qual se tem dados disponíveis. A média nacional é de 4,4 homicídios para cada 100.000 mulheres – o que já é uma das taxas mais elevadas do mundo. Os problemas que encontramos em Roraima na proteção das mulheres contra abusos são sintomáticos do fracasso nacional na proteção às mulheres. Estudos no Brasil e no mundo estimam que grande porcentagem das mulheres que sofrem mortes violentas são assassinadas por parceiros ou ex-parceiros.

Por que é tão difícil para as mulheres denunciarem a violência doméstica? Elas podem querer evitar a experiência de compartilhar e reviver suas histórias traumáticas – uma experiência que Taise descreveu como estar “tão exposta que você se sente nua”. Ou elas podem ter receio de sofrer acusações infundadas que aumentem o sentimento de vergonha, como aquelas que Taise mais tarde ouviu de policiais: “O que você fez para ele fazer isso?” ou “não é você que está provocando?”.

Em muitos casos, a principal razão para mulheres desistirem de denunciar é o simples fato de não acreditarem que reportar a violência à polícia mudará alguma coisa – as autoridades não as protegerão de verdade, e tampouco irão investigar e processar os agressores.

Algumas vezes, no entanto, as mulheres superam essas barreiras. Taise finalmente conseguiu reunir coragem suficiente para ir às autoridades. Ela registrou mais de 15 boletins de ocorrência durante vários anos e apresentou provas para sustentar suas declarações. Ela deixou seu celular para análise em uma delegacia de polícia civil por um ano e meio. No entanto, todos os crimes que ela denunciou prescreveram sem que houvesse qualquer resultado.

O caso de Taise não é, de forma alguma, único. Em Roraima, documentamos 31 casos de violência doméstica. Descobrimos que muitas mulheres não denunciam abusos, ou que sofrem abusos durante meses ou anos antes de irem às autoridades. Quando elas superam adversas dificuldades e vão à polícia, a resposta é claramente inadequada, como mostramos em nosso novo relatório “Um dia vou te matar”.

Encontramos uma longa lista de falhas na maneira com que o estado lida com casos de violência doméstica. A polícia militar não tem funcionários suficientes para responder a todas as ligações de emergência. Alguns policiais civis recusam-se a registrar denúncias de violência doméstica ou a pedir medidas protetivas aos juízes. Em vez de escutar as vítimas, eles as direcionam para a única delegacia da mulher no estado – especializada em crimes contra mulheres – mesmo quando esta se encontra fechada.

As mulheres em Roraima precisam contar suas histórias de violência, incluindo as de abuso sexual, em áreas abertas na recepção, onde a confidencialidade não está protegida e o risco de estigma ou trauma é alto – isso porque nenhuma delegacia de polícia no estado tem salas privativas para colher depoimentos. Policiais civis que lidam com ocorrências de violência doméstica não recebem nenhum treinamento específico escrever relatórios e para entrevistar as vítimas desses casos tão traumáticos e sensíveis. A maioria dos casos perdura por anos sem que investigações sejam realizadas e acabam eventualmente arquivados em razão da prescrição, sem qualquer ação penal.

Mas esses problemas não são exclusivos de Roraima. O Brasil tem normas abrangentes para prevenir a violência doméstica e garantir a justiça quando abusos ocorrem, estabelecidas pela lei Maria da Penha de 2006, nomeada em homenagem a uma vítima que levou seu caso a um tribunal regional. Mas ainda falta implementá-la de fato por todo o país.

Embora algumas autoridades de Roraima tenham mostrado um compromisso notável em ajudar mulheres, as autoridades brasileiras precisam fazer muito mais.

O governo federal deve começar a fazer sua parte levando mais a sério as suas obrigações internacionais para com as mulheres. O Brasil ainda não enviou o seu oitavo relatório à comissão da ONU que avalia o cumprimento da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW, no original em inglês). O relatório do Brasil está com 17 meses de atraso. Ele deveria reconhecer as enormes dificuldades do Brasil no enfrentamento à violência doméstica. O relatório também deveria fazer o Brasil assumir o compromisso de reduzir os obstáculos que as mulheres enfrentam para registrar denúncias na polícia, garantir que as ocorrências sejam adequadamente investigadas e que prossigam o devido processo criminal, e que medidas protetivas concedidas por juízes sejam adequadamente monitoradas, além de alocar recursos suficientes para treinar policiais para lidar com esses casos de forma humana e eficaz, punindo quando não cumprirem com suas obrigações.

Taise tinha uma mensagem para outras mulheres vítimas de violência doméstica: “Sei que você está assustada. Sei que sente vergonha… e que quer, de alguma forma, proteger a sua família. Mas lembre-se de que você deve começar protegendo a si mesma”.

Para isso, todas as outras “Taises” espalhadas pelo país precisam do compromisso das autoridades brasileiras de garantir um sistema de justiça eficiente, que possa fornecer os mecanismos de proteção e a justiça que, em grande parte, ainda existem apenas no papel. 

 

Uma versão deste artigo foi publicada no #AgoraÉQueSãoElas do jornal Folha de São Paulo.

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